A ideia de agradecer pela colheita certamente é um dos
costumes mais antigos da humanidade e foi prática nas mais diversas culturas,
muito antes do surgimento do cristianismo ou das religiões monoteístas. A
sobrevivência sempre esteve estreitamente ligada à bênção dos deuses,
responsáveis pela fertilidade do solo, pelo tempo conveniente para o
desenvolvimento das culturas e pela fartura na hora da colheita.
No cristianismo, a festa da colheita surgiu como uma
celebração tradicional do calendário já a partir do terceiro século. Por
motivos óbvios, ela não pode ter uma data comum ao redor do mundo, uma vez que
os tempos de colheita mudam conforme a região geográfica e o clima. Trazida
pelos imigrantes ao Novo Mundo, ela passou cedo a ser festejada no início do
inverno no hemisfério Sul, em substituição à tradicional data europeia de
meados de outubro.
Hoje, a festa da colheita integra um culto na maior parte
das comunidades que a celebram; um dia especial em que os frutos da terra são
conduzidos ao altar, em sinal de gratidão pela fartura da safra. É uma festa
especial, bonita e carregada de simbologia, na qual se agradece a Deus pela
criação e pelos resultados do trabalho. Isto certamente é muito bom, pois,
enquanto o ser humano se considera parte da criação divina, ele também irá
atribuir a Deus tudo aquilo que produz, tornando-se agradecido por tudo.
Será que aqueles frutos sobre o altar, no dia do culto de
ação de graças pela colheita, são um sinal suficientemente significativo de
todo fruto do trabalho humano em nossos dias? Hoje, o campo de trabalho que
mais se desenvolve em todas as sociedades modernas é o setor de serviços. Será
que esse setor, que nos separa em produtores e consumidores, aparece de maneira
significativa na liturgia e na reflexão de um culto voltado para a festa da
colheita? Será que nossa liturgia de ação de graças pela colheita contempla de
maneira satisfatória o mundo dos serviços e as relações de trabalho dos nossos
dias?
De modo geral, os cultos de ação de graça pela colheita são
celebrados com uma liturgia rural, com todo seu romantismo e linguagem
característicos. Ainda se fala nos “frutos da terra”, nas “dádivas da colheita”,
na “generosidade da natureza”, ao mesmo tempo em que o altar fica tomado por
batatas, repolhos, sacos de milho, pães e cucas de aspecto muito saboroso e, às
vezes, até por algum animal vivo (um porco, uma novilha ou um marreco),
devidamente reservado no fundo da igreja para a hora do leilão.
Isso pode e deve permanecer assim, porque é uma tradição
rica e até mesmo educativa, uma vez que ajuda muitos a ver ao vivo o que apenas
reconhecem sofrivelmente no supermercado. Será que as pessoas que nada mais têm
a ver com o mundo rural ainda conseguem reconhecer sua atividade prestadora de
serviços na simbologia rural? Ou será que alguém aí já teve a brilhante ideia
de colocar um computador no altar, em meio a abóboras e vasos de flores? Ou
fomos capazes de lembrar-se dos muitos que perderam seus empregos em função da
falência da empresa mais importante da localidade naquele ano?
Outra dimensão que deveria nos preocupar de modo especial, é
a das injustas relações de trabalho e de salários da maioria do povo. Trata-se
de uma injustiça que faz bilhões de vítimas ao redor do planeta. É o ponto
exato em que somos desafiados a perceber que dar graças a Deus pelo que temos e
colhemos é muito mais que fazer um belo culto de gratidão. Dar graças é manter
os celeiros abertos. Enquanto a fome continua vitimando a metade da humanidade,
mantemos nossos celeiros abarrotados e, pior, com as portas cadeadas.
Talvez seja este o principal motivo do fracasso parcial de
um programa mundialmente elogiado, como o Fome Zero. Para repartir é preciso
ser grato e a verdadeira gratidão somente faz sentido quando reparte. E não
apenas o supérfluo, o excedente, o dispensável. Repartir é dividir o
indispensável. O limite é a parábola de Jesus sobre o agricultor que realizou
uma colheita excepcional e decidiu abarrotar seus celeiros, construindo mais
para guardar tudo (Lucas 12.16-21).
Um último aspecto a ser levado em conta é a crescente
influência da cidade sobre o campo. Não estou nem pensando nas mudanças de
hábitos e tradições em função da facilidade de acesso à informação. Minha
preocupação dirige-se, de modo específico, para o crescente gerenciamento
empresarial do campo, que deve usar todos os meios para produzir cada vez mais
e melhor.
Também a pesquisa científica vem ganhando cada vez mais
espaço, em especial a pesquisa genética e de transgênicos. Uma natureza
manipulada e agredida rende-se ao poder dos microscópios e levanta perguntas
que não podem ser simplesmente encobertas por celebrações românticas e bonitas.
Será este modo de colher, levado ao extremo pela tecnologia, também ainda um
motivo para agradecimento a Deus? Ou ele deve ser, muito antes, objeto sério de
preocupação e questionamento?
A humanidade permanece sendo parte da natureza e da criação
de Deus, mesmo quando intervém nela de modo agressivo e ousado. E, talvez faça
bem a esta humanidade refletir sobre sua dependência dessa natureza. A partir
dessa reflexão, podemos expressar nossa gratidão a Deus enquanto lhe ofertamos
ações de graças pelas dádivas de sua criação e pelas muitas dimensões do
trabalho humano. Ao mesmo tempo, precisamos assumir um compromisso mais sério
de responsabilidade pela preservação da criação e pela inclusão das muitas
pessoas que estão do lado de fora da sala de jantar na hora em que nos regalamos
com o fruto do nosso trabalho.
Publicado na revista Novolhar/Junho de 2004