A porta da sala da Presidência da República em Brasília se abria, na manhã do dia 6 de novembro de 1970, para os pastores Karl Gottschald, presidente da IECLB, Augusto Kunert, regional da RE IV, e Ernesto Schlieper, pároco da comunidade luterana de Brasília. Os três tinham uma missão difícil, que exigia um alto grau de coragem e amor ao evangelho. Estavam prestes a ter uma audiência com o presidente Emílio Garrastazu Médici, para entregar-lhe um documento.
Este documento completa 40 anos. Entrou para a história como o “Manifesto de Curitiba”. Havia sido aprovado pelos conciliares do VII Concílio Geral da IECLB, na plenária do dia 24 de outubro de 1970, na capital paranaense. Com a ousadia, a igreja luterana entrava para o seleto grupo das instituições não coniventes com a ditadura instalada no Brasil em 1964 e com a tortura e o desprezo aos direitos humanos.
O documento também era uma reação tardia a um fato que havia frustrado profundamente a IECLB. Por causa da situação política no Brasil, a Federação Luterana Mundial (FLM) havia cancelado a realização da sua assembleia mundial em Porto Alegre, marcada para os dias 14 a 24 de julho de 1970.
Dois meses antes, mesmo com quase tudo pronto, os parceiros luteranos europeus alegaram “falta de segurança” para realizar a assembleia no Brasil, transferindo-a para Evian, na França. Se isto realmente era assim e atemorizava até mesmo os europeus, a IECLB não podia continuar calada diante do que a ditadura fazia no país.
Mas não se espere um documento contundente, que vai direto ao ponto e expressa com clareza a que veio. Antes, é um texto cuidadoso, que hoje facilmente seria classificado como morno.
“O texto era irênico”, defende o Dr. Lindolfo Weingärtner, em entrevista a O Caminho, aportuguesando o termo “eirene”, que significa “paz” em grego. “Mas não apaziguador, no sentido de condescendente, e sim no jeito que os cristãos têm de falar entre si sobre questões difíceis”, ele esclarece.
Na época, Weingärtner era reitor da Faculdade de Teologia em São Leopoldo e coordenador da Comissão Teológica da IECLB. “Eu elaborei um texto-base, a pedido da comissão, que discutimos e oferecemos à direção da Igreja para ser publicado ou encaminhado ao governo, de alguma maneira”, relembra. A direção da IECLB levou o texto ao concílio, dando início ao processo que terminou no Gabinete da Presidência, naquele nervoso dia 6 de novembro, em Brasília.
Considerando a mão que conduziu a pena, o texto de três páginas datilografadas era recheado de sólidos argumentos teológicos acerca das relações entre Igreja e Estado. Como portadora da mensagem de Deus, a Igreja não pode se esquivar de testemunhar sem desobedecer ao seu Senhor, defendia o texto. Sua mensagem “é dirigida ao homem todo, não só à sua alma”. Por isso, “terá consequências e implicações em toda a esfera da sua vivência – inclusive física, cultural, social, econômica e política”.
Reivindicando para a Igreja o papel de “consciência da Nação”, o documento justifica sua crítica aos rumos do governo, “não de fiscal, mas antes de vigia”.
O faz com extremo cuidado. “A Igreja, em tais casos, não procurará contestar o poder do Estado, como se ela fosse um partido político, mas proclamará o poder de Cristo. Onde ela se sentir compelida a contrariar medidas governamentais, antes de tomar qualquer atitude pública, procurará dialogar com as autoridades respectivas”, procurando sempre agir “sem intuitos demagógicos”.
“Conta-se que Médici não se mostrou muito impressionado com esta argumentação teológica”, diz o pastor Meinrad Piske, que também participou da entrevista com Weingärtner. Mas ele anuiu ao ser lido o trecho que deixava claro que “o culto terá consequências políticas, por despertar responsabilidade política, mas não deverá ser usado como meio para favorecer correntes políticas determinadas”. Entusiasmou-se ao ouvir “A pátria será honrada e amada; seus símbolos serão respeitados e usados com orgulho cívico, no sentido mais legítimo, mas o cristão não poderá falar da pátria em categorias divinizadoras”.
Mas o semblante do presidente foi se fechando quando o manifesto passou a discorrer sobre os direitos humanos. O texto fala de “notícias alarmantes sobre práticas desumanas que estariam ocorrendo em nosso País”. Não acusa. Apenas constata que tais notícias corriam por aí.
O Manifesto de Curitiba não se intimida ao chegar, finalmente, ao ponto: “Entendemos mesmo, como Igreja, que nem situações excepcionais podem justificar práticas que violam os direitos humanos”. E é por esta determinação e ousadia profética que o Manifesto deve permanecer na história como um dos mais corajosos documentos já publicados pela IECLB.
Ele foi divulgado somente depois das eleições de 15 de novembro, num acordo com a Presidência, para evitar seu uso para fins eleitorais. “As lideranças da Igreja ficaram impressionadas ao ler o texto no jornal O Estado de São Paulo, que publicou o Manifesto na íntegra”, lembra o pastor Piske. “Este jornal vivia cheio de poesias e colunas pretas no lugar dos textos que haviam sido cortados pela censura”, completa.
O Manifesto de Curitiba, quarenta anos depois dessa ousadia luterana, continua sendo um marco. Num momento de euforia ideológica do Estado, que se agigantava em atitudes e leis anti-democráticas e repressoras, o Manifesto propõe reflexão sobre os princípios éticos em jogo e defende os direitos humanos.
Ao mesmo tempo, a IECLB oficializa, com aquele documento, o seu “inteiro apoio a quem se acha seriamente empenhado em coibir abusos cometidos e em oferecer ao mais humilde dos brasileiros – inclusive ao politicamente discordante – a absoluta certeza de que será tratado segundo as normas da mesma lei com a qual possa ter entrado em conflito”.
(Matéria escrita pelo blogueiro e publicada no jornal O Caminho, edição de outubro de 2010)
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