Texto: Lucas 4.14-21
I
Quando eu leio este texto, lembro do antigo ditado “santo de
casa não faz milagre”. Ouso comparar este momento da vida de Jesus com um dos
momentos mais críticos da vida de quase todos os pastores e pastoras da igreja.
Quando vamos para o estudo de teologia, saímos de um lugar onde as pessoas
somente se lembram de nós como crianças, das nossas travessuras e brincadeiras
da infância. A minha infância também marcou as pessoas que me conheceram, na
minha terra natal. Assim, é estranho para elas imaginar-me voltando para casa
anos depois como pastor, para subir no mesmo púlpito de pregadores como o
Praeses Stoer ou o pastor Ivo Lichtenfels.
É assim também com Jesus. Ele entra na sinagoga do lugar
onde todos o viram crescer e o conheceram como moleque. Naquele tempo, qualquer
pessoa podia entrar lá, ler um texto dos rolos sagrados e fazer uma explanação.
Jesus faz isso na sinagoga de Nazaré, a terra onde cresceu. Todo mundo conhecia
aquele filho do carpinteiro. Muitos já o viram arrumar uma porta, instalar uma
janela ou trepado em algum telhado. Agora todo mundo se admira que aquele jovem
ocupe o lugar da leitura dos rolos e fale sobre os textos sagrados.
Como qualquer judeu do seu tempo, Jesus podia escolher o
texto. Mas vamos admitir que a mão de Deus o tivesse guiado para abrir
exatamente aquele trecho do capítulo 61 do livro do profeta Isaías, nos
versículos 1 e 2, no qual um mensageiro imbuído do espírito de Deus se
considera ungido para “evangelizar os
pobres, proclamar libertação aos cativos, restaurar a vista aos cegos, libertar
os oprimidos e apregoar o ano aceitável do Senhor”.
A escolha desse trecho faz com que todo mundo naquela
sinagoga se volte para Jesus, para ver o que aquele filho do carpinteiro vai
dizer. E ele diz só uma frase, absolutamente desconcertante: “Hoje se cumpriu a escritura que acabais de
ouvir”. Numa única frase curta ele diz aos seus conterrâneos nada menos do
que o seguinte: “O tempo da salvação
inicia por meu intermédio e através da minha pregação! Se vocês acreditarem na
minha mensagem, podem ter parte neste tempo da salvação. Aqui está diante de
vocês o cara do qual falam essas promessas bíblicas!”. Parafraseando o
sucesso musical do momento, Jesus diz: “Esse
cara sou eu!”.
É claro que essa atitude de Jesus não tem nada a ver com o
que eu experimentei diante dos meus conterrâneos, em Rio do Sul, nas poucas
vezes em que preguei naquela pequena igreja no alto do morro, depois de virar
pastor. Eu jamais poderia dizer: “Esse cara sou eu”. Eu seria enxotado como
charlatão, arrogante e presunçoso. Mesmo para Jesus aquela frase deu início a um
tempo de muitos questionamentos e explicações, por afirmar que ele era o filho
de Deus, o Messias, aquele que era esperado pelo povo de Israel para instaurar
um novo reinado de paz e justiça.
II
Essas palavras de Jesus sempre criaram muita polêmica e
discussão, fazendo com que as pessoas levantassem muitas perguntas. O que Jesus
queria dizer aos seus conterrâneos e também a nós hoje? O que significa evangelizar e a quem ele se refere
quando fala dos pobres? Será que Jesus
fala somente de um tipo de pobreza espiritual, referindo-se a um vazio na alma,
que precisa ser preenchido com o maravilhoso conteúdo da palavra de Deus? Ou ele
se refere à pobreza material, à carência do básico para uma vida digna?
Bem, segundo os principais estudiosos e teólogos que
analisaram essas palavras de Isaías e também a afirmação de Jesus, esta
declaração do Messias refere-se em primeiro lugar a ele mesmo, que se
apresenta. Eu sou aquele que vocês estavam esperando, o Messias, o Salvador.
Depois, ele diz o que isso significa, em termos de mudanças já, aqui e agora,
para Israel e o mundo em que vivemos. E, nesse caso, ele tem uma mensagem muito
especial para os pobres. E Jesus não está dando nenhuma chance aqui de
idealizar esta palavra, do tipo “pobres espirituais”. Jesus está falando dos
miseráveis, daqueles que estão entre os fracos e excluídos da sociedade, das
vítimas da injustiça.
Refere-se, por exemplo, a mais de um bilhão de pessoas no
mundo que não têm o que comer e passam vários dias sem uma refeição completa.
Refere-se também aos que não têm casa para morar, roupas para o frio, emprego
para sustentar a família ou àqueles a quem se nega o básico para uma vida
digna. Ele refere-se também aos deficientes (os cegos), aos presos e estropiados.
Mas Jesus não afirma isso para consolar essa gente e dizer
que tenham paciência, pois no Seu Reino tudo vai mudar. Aliás, quando ele diz “esse cara sou eu”, ele não está
afirmando que resolveria tudo num passe de mágica, do dia para a noite. E tem
muita gente que ainda hoje cobra: como é que Jesus diz isso se dois mil anos
depois continua havendo pobres, cegos, presos, estropiados e toda sorte de
desgraça e injustiça? Nada mudou, realmente!
Então eu só posso deduzir que esta palavra dirige-se à parte
da humanidade que pode fazer a diferença, ajudar, mudar as coisas. Dirige-se a
gente como eu e você, que tem comida no armário e um teto sobre a cabeça.
Às vezes eu me pergunto por que e quando as pessoas se
tornam duras e insensíveis a ponto de trancar os seus armários, as suas casas e
os seus corações às necessidades dos outros. Sabe, em algum momento das nossas
vidas quebra-se o encanto e o essencial é destruído.
Eu sempre fico impressionado como as crianças pequenas estão
prontas a repartir... Tente pedir algo a uma criança de colo, e ela prontamente
vai lhe estender o que quer que tenha na mão. É uma atitude espontânea, de
compartilhar e repartir. Mais tarde, ela passa a recolher o braço, a esconder
para que ninguém pegue o que é seu.
O que acontece conosco a partir de um determinado momento,
que nos torna tão duros, insensíveis, egoístas? Que tipo de perversidade cresce
dentro de nós, enquanto vamos “adultecendo”? Será que é a vida que nos afasta
da infância solidária e generosa e nos transforma em solitários e gananciosos?
Li uma frase nesses dias: “Devíamos ensinar aos nossos filhos o valor das coisas e não o preço delas”.
Talvez estejamos mais preocupados com custos, em vez de dar valor à
solidariedade. Mas eu desconfio que isso faça parte da nossa característica
humana. O medo de não ter no futuro, de não agarrar o suficiente, de não ter em
estoque, torna-nos ingratos e sovinas. A
ambição está dentro das pessoas, como uma característica intrínseca. Mais do
que um impulso incontrolável, ela pode tornar-se uma desgraça. Obcecados pelos
próprios desejos, somos capazes de privar os outros do mínimo para a vida.
Leon Tolstoi conta
a história de um homem a quem foi prometida uma área de terra do tamanho que
quisesse, desde que arasse em um só dia um sulco ao redor da área que
pretendesse ter. Ele começou bem cedo, imaginando um sítio de bom tamanho para sustentar
a família. Na metade da manhã, ele começou a achar que a área era muito pequena
para todos os sonhos que foi construindo enquanto segurava o arado. Julgou que
devia ampliá-la. Passo a passo, foi seguindo seus sonhos. Dizia que era para a
família, que os filhos comeriam melhor e a esposa usaria roupas finas. Ao meio
dia, os seus sonhos o tornaram impaciente. Precisava de mais terra! Incita os
cavalos, para apressar seus passos.
Enquanto os sonhos crescem,
ele nota que o sol está descendo no horizonte e o dia acabando. Devia voltar ao
ponto de partida ou perderia tudo! Em pânico, avança aos tropeços. Quando o sol
chega ao horizonte, o marco da chegada estava bem diante dele. Seu coração
disparado acelera a cada passo, o estômago começa a doer e seus músculos
endurecem. Mas tinha de chegar! A poucos passos do fim, ele sucumbiu sob o
esforço. Caiu e morreu de ataque cardíaco, para ser enterrado em um único
pedaço de terra que media um metro e oitenta por noventa centímetros.
III
Esta ambição intrínseca descrita por Tolstoi nos move a
todos. Por isso mesmo, essa palavra de Jesus tem tudo a ver com o fato de que,
de toda a comida produzida no planeta, a metade (sim a metade!) é perdida ou
jogada no lixo, porque fazemos estoques para esperar um preço melhor e depois
jogamos fora porque o sabor ficou alterado ou as frutas estão manchadas.
A palavra de Jesus tem a ver com milhares de crianças
africanas ou nordestinas que sofrem das doenças da subnutrição e morrem por
causa delas, só porque nós nos damos ao luxo de ter a geladeira e a despensa
lotada a ponto de ter que jogar coisas fora porque passam da validade ou
estragam. Para Jesus, o “evangelho” (que significa boa notícia!) para essa
gente representa vida em abundância. E é isso que Jesus traz quando diz que
veio “evangelizar os pobres”.
Em nosso louco e insensível egoísmo da sociedade da
acumulação, não temos espaço para o que Jesus chama de “apregoar o ano
aceitável do Senhor”. Esta palavra refere-se ao antigo “ano da graça”, ou “ano
sabático” do antigo testamento. Segundo a Lei de Moisés, em Levítico 25.8ss, a
cada 50 anos devia acontecer um “ano da graça”, em cujo “dia da reconciliação”
todos os escravos deviam ser libertados e as dívidas perdoadas. Os que perderam
a terra por causa da dívida a receberiam de volta; os endividados receberiam o
perdão de suas dívidas e poderiam recomeçar do zero.
Só que essa lei mosaica nunca saiu do papel em Israel e esse
tal “ano da graça” jamais aconteceu realmente. Ele sempre era adiado ou negligenciado.
Ou seja, a bonita lei do perdão das dívidas era empurrada com a barriga por
conta da velha “ambição intrínseca” descrita por Tolstoi, e que nos atinge a
todos. Tanto que, por conta disso, os profetas assumiram essa ideia para as
suas profecias da chegada do Messias, que iria trazer tal libertação em nome de
Deus, ou seja, “apregoar o ano aceitável
do Senhor”. O perdão da dívida virou uma promessa para quando o Salvador
viesse. Ou seja, o Messias devia resolver o que era para ser feito por todos...
IV
Quando Jesus diz “esse cara sou eu”, ninguém naquela
sinagoga o interpela e faz perguntas. Na verdade, ninguém está muito
interessado em saber como iria se realizar o cumprimento da promessa da chegada
do “ano aceitável do Senhor”, ou seja, do “perdão das dívidas”. Nem mesmo
depois, quando apesar dos milagres de Jesus ainda há um monte de pobres, cegos,
presos e excluídos no mundo. Também os moradores de Nazaré queriam admirar
aquele carpinteiro que virou pregador; queriam um milagre dele, mas não queriam
refletir sobre o conteúdo da sua mensagem. E ele foi rejeitado pelos seus
conterrâneos, que o ameaçaram e só não o mataram porque ainda não era hora.
Também hoje em dia as pessoas não sabem bem o que fazer com
este Jesus, que afirma tão categoricamente que “hoje se cumpriu esta palavra”.
Como assim, se continua havendo tanta miséria, dor e sofrimento? Como assim, se
há tanta pobreza? Onde está o “ano aceitável do Senhor”? Já se passaram dois
mil anos e o mundo continua absurdamente mergulhado em milhões de necessidades
e desgraças de toda ordem.
V
Cada novo ano, também este ano de 2013 que está diante de
nós, é um “ano aceitável do Senhor”. Quem confia em Jesus Cristo, escolheu
aquele a quem foi dado “todo o poder nos céus e na terra”, e também sobre tudo
o que quer nos oprimir neste novo ano.
Por Jesus ter vindo como aquele que anuncia o evangelho aos
pobres, presos, cegos e excluídos, nós somos diretamente envolvidos na tarefa
de mudar a realidade dos que sofrem. Não vamos nos satisfazer apenas em anunciar
a salvação das almas, mas lutar por vida em abundância. Não vamos nos empenhar
só para que conheçam Jesus e creiam nele, mas nos importar com o desemprego e a
fome, a doença e a falta de liberdade, o ambiente de conflito em que vivem, a
hostilidade da exclusão que enfrentam. Vamos nos informar para saber onde
ajudar, nos envolver em ações sociais ou participar com doações.
Para nos envolver na tarefa de anunciar o “ano aceitável do
Senhor”, precisamos tomar a decisão de dar a volta no nosso arado da ambição e
fechar o círculo em volta do que pretendemos. Só podemos contribuir na tarefa
de anunciar o evangelho quando nos livramos da “ambição intrínseca”, quando
dizemos que o que temos é suficiente para nós e também para ajudar.
Porque, é importante saber, assim como as coisas que
estocamos em demasia se perdem, são atacadas pelo mofo e apodrecem, também a
graça de Deus tem prazo de validade. E ela se extingue exatamente quando
ultrapassamos o ponto de voltar com o arado para fechar o círculo, dizendo: “Está
de bom tamanho! Não preciso mais. Posso repartir, ajudar, melhorar a vida do
outro”. É neste momento que também para nós Jesus traz o “ano aceitável do
Senhor”, perdoando a nossa dívida, preenchendo-nos com a sua graça.
Quando adiamos esta decisão, por conta da nossa “ambição
intrínseca”, podemos ter um ataque cardíaco antes de fechar o círculo. E então,
a nossa recompensa será somente um pedaço de terra de um metro e oitenta por noventa centímetros. E é então que também nós
nos tornamos pessoas pobres em espírito, presas à nossa ambição, cegas para
Cristo e para o próximo, de mente pequena e esmagada. Precisamos do auxílio de
Deus, de sua presença e de seu amor, porque estamos amarrados ao nosso Eu e não
conseguimos nos libertar do egoísmo sem que Deus nos ajude.
Que neste novo ano
Deus nos liberte da ambição intrínseca e nos transforme, para que 2013 seja,
também para nós, o “ano aceitável do Senhor”.
Amém.
__________________ Prédica proferida no culto do dia 27.01.2013 na igreja Martin Luther, no bairro Itoupava Seca, em Blumenau.
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