segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Ação de Graças no campo e na cidade



A ideia de agradecer pela colheita certamente é um dos costumes mais antigos da humanidade e foi prática nas mais diversas culturas, muito antes do surgimento do cristianismo ou das religiões monoteístas. A sobrevivência sempre esteve estreitamente ligada à bênção dos deuses, responsáveis pela fertilidade do solo, pelo tempo conveniente para o desenvolvimento das culturas e pela fartura na hora da colheita.

No cristianismo, a festa da colheita surgiu como uma celebração tradicional do calendário já a partir do terceiro século. Por motivos óbvios, ela não pode ter uma data comum ao redor do mundo, uma vez que os tempos de colheita mudam conforme a região geográfica e o clima. Trazida pelos imigrantes ao Novo Mundo, ela passou cedo a ser festejada no início do inverno no hemisfério Sul, em substituição à tradicional data europeia de meados de outubro.

Hoje, a festa da colheita integra um culto na maior parte das comunidades que a celebram; um dia especial em que os frutos da terra são conduzidos ao altar, em sinal de gratidão pela fartura da safra. É uma festa especial, bonita e carregada de simbologia, na qual se agradece a Deus pela criação e pelos resultados do trabalho. Isto certamente é muito bom, pois, enquanto o ser humano se considera parte da cria­ção divina, ele também irá atribuir a Deus tudo aquilo que produz, tornando-se agradecido por tudo.

Será que aqueles frutos sobre o altar, no dia do culto de ação de graças pela colheita, são um sinal suficientemente significativo de todo fruto do trabalho humano em nossos dias? Hoje, o campo de trabalho que mais se desenvolve em todas as sociedades modernas é o setor de serviços. Será que esse setor, que nos separa em produtores e consumidores, aparece de maneira significativa na liturgia e na reflexão de um culto voltado para a festa da colheita? Será que nossa liturgia de ação de graças pela colheita contempla de maneira satisfatória o mundo dos serviços e as relações de trabalho dos nossos dias?

De modo geral, os cultos de ação de graça pela colheita são celebrados com uma litur­gia rural, com todo seu romantismo e linguagem característicos. Ainda se fala nos “frutos da terra”, nas “dádivas da colheita”, na “generosidade da natureza”, ao mesmo tempo em que o altar fica tomado por batatas, repolhos, sacos de milho, pães e cucas de aspecto muito saboroso e, às vezes, até por algum animal vivo (um porco, uma novilha ou um marreco), devidamente reservado no fundo da igreja para a hora do leilão.

Isso pode e deve permanecer assim, porque é uma tradição rica e até mesmo educativa, uma vez que ajuda muitos a ver ao vivo o que apenas reconhecem sofrivelmente no supermercado. Será que as pessoas que nada mais têm a ver com o mundo rural ainda conseguem reconhecer sua atividade prestadora de serviços na simbologia rural? Ou será que alguém aí já teve a brilhante ideia de colocar um computador no altar, em meio a abóboras e vasos de flores? Ou fomos capazes de lembrar-se dos muitos que perderam seus empregos em função da falência da empresa mais importante da localidade naquele ano?
Outra dimensão que deveria nos preocupar de modo especial, é a das injustas relações de trabalho e de salários da maioria do povo. Trata-se de uma injustiça que faz bilhões de vítimas ao redor do planeta. É o ponto exato em que somos desafiados a perceber que dar graças a Deus pelo que temos e colhemos é muito mais que fazer um belo culto de gratidão. Dar graças é manter os celeiros abertos. Enquanto a fome continua vitimando a metade da humanidade, mantemos nossos celeiros abarrotados e, pior, com as portas cadeadas.
Talvez seja este o principal motivo do fracasso parcial de um programa mundialmente elogiado, como o Fome Zero. Para repartir é preciso ser grato e a verdadeira gratidão somente faz sentido quando reparte. E não apenas o supérfluo, o excedente, o dispensável. Repartir é dividir o indispensável. O limite é a parábola de Jesus sobre o agricultor que realizou uma colheita excepcional e decidiu abarrotar seus celeiros, construindo mais para guardar tudo (Lucas 12.16-21).

Um último aspecto a ser levado em conta é a crescente influência da cidade sobre o campo. Não estou nem pensando nas mudanças de hábitos e tradições em função da facilidade de acesso à informação. Minha preocupação dirige-se, de modo específico, para o crescente gerenciamento empresarial do campo, que deve usar todos os meios para produzir cada vez mais e melhor.

Também a pesquisa científica vem ganhando cada vez mais espaço, em especial a pesquisa genética e de transgênicos. Uma natureza manipulada e agredida rende-se ao poder dos microscópios e levanta perguntas que não podem ser simplesmente encobertas por celebrações românticas e bonitas. Será este modo de colher, levado ao extremo pela tecnologia, também ainda um motivo para agradecimento a Deus? Ou ele deve ser, muito antes, objeto sério de preocupação e ques­tio­na­men­to?

A humanidade permanece sendo parte da natureza e da criação de Deus, mesmo quando intervém nela de modo agressivo e ousado. E, talvez faça bem a esta humanidade refletir sobre sua dependência dessa natureza. A partir dessa reflexão, podemos expressar nossa gratidão a Deus enquanto lhe ofertamos ações de graças pelas dádivas de sua cria­ção e pelas muitas dimensões do trabalho humano. Ao mesmo tempo, precisamos assumir um compromisso mais sério de responsabilidade pela preservação da criação e pela inclusão das muitas pessoas que estão do lado de fora da sala de jantar na hora em que nos regalamos com o fruto do nosso trabalho.

Publicado na revista Novolhar/Junho de 2004