segunda-feira, 13 de junho de 2011

Manifesto de Curitiba completa 40 anos

A porta da sala da Presidência da República em Brasília se abria, na manhã do dia 6 de novembro de 1970, para os pastores Karl Gottschald, presidente da IECLB, Augusto Kunert, regional da RE IV, e Ernesto Schlieper, pároco da comunidade luterana de Brasília. Os três tinham uma missão difícil, que exigia um alto grau de coragem e amor ao evangelho. Estavam prestes a ter uma audiência com o presidente Emílio Garrastazu Médici, para entregar-lhe um documento.

Este documento completa 40 anos. Entrou para a história como o “Manifesto de Curitiba”. Havia sido aprovado pelos conciliares do VII Concílio Geral da IECLB, na plenária do dia 24 de outubro de 1970, na capital paranaense. Com a ousadia, a igreja luterana entrava para o seleto grupo das instituições não coniventes com a ditadura instalada no Brasil em 1964 e com a tortura e o desprezo aos direitos humanos.

O documento também era uma reação tardia a um fato que havia frustrado profundamente a IECLB. Por causa da situação política no Brasil, a Federação Luterana Mundial (FLM) havia cancelado a realização da sua assembleia mundial em Porto Alegre, marcada para os dias 14 a 24 de julho de 1970.

Dois meses antes, mesmo com quase tudo pronto, os parceiros luteranos europeus alegaram “falta de segurança” para realizar a assembleia no Brasil, transferindo-a para Evian, na França. Se isto realmente era assim e atemorizava até mesmo os europeus, a IECLB não podia continuar calada diante do que a ditadura fazia no país.

Mas não se espere um documento contundente, que vai direto ao ponto e expressa com clareza a que veio. Antes, é um texto cuidadoso, que hoje facilmente seria classificado como morno.

“O texto era irênico”, defende o Dr. Lindolfo Weingärtner, em entrevista a O Caminho, aportuguesando o termo “eirene”, que significa “paz” em grego. “Mas não apaziguador, no sentido de condescendente, e sim no jeito que os cristãos têm de falar entre si sobre questões difíceis”, ele esclarece.

Na época, Weingärtner era reitor da Faculdade de Teologia em São Leopoldo e coordenador da Comissão Teológica da IECLB. “Eu elaborei um texto-base, a pedido da comissão, que discutimos e oferecemos à direção da Igreja para ser publicado ou encaminhado ao governo, de alguma maneira”, relembra. A direção da IECLB levou o texto ao concílio, dando início ao processo que terminou no Gabinete da Presidência, naquele nervoso dia 6 de novembro, em Brasília.

Considerando a mão que conduziu a pena, o texto de três páginas datilografadas era recheado de sólidos argumentos teológicos acerca das relações entre Igreja e Estado. Como portadora da mensagem de Deus, a Igreja não pode se esquivar de testemunhar sem desobedecer ao seu Senhor, defendia o texto. Sua mensagem “é dirigida ao homem todo, não só à sua alma”. Por isso, “terá consequências e implicações em toda a esfera da sua vivência – inclusive física, cultural, social, econômica e política”.

Reivindicando para a Igreja o papel de “consciência da Nação”, o documento justifica sua crítica aos rumos do governo, “não de fiscal, mas antes de vigia”.

O faz com extremo cuidado. “A Igreja, em tais casos, não procurará contestar o poder do Estado, como se ela fosse um partido político, mas proclamará o poder de Cristo. Onde ela se sentir compelida a contrariar medidas governamentais, antes de tomar qualquer atitude pública, procurará dialogar com as autoridades respectivas”, procurando sempre agir “sem intuitos demagógicos”.

“Conta-se que Médici não se mostrou muito impressionado com esta argumentação teológica”, diz o pastor Meinrad Piske, que também participou da entrevista com Weingärtner. Mas ele anuiu ao ser lido o trecho que deixava claro que “o culto terá consequências políticas, por despertar responsabilidade política, mas não deverá ser usado como meio para favorecer correntes políticas determinadas”. Entusiasmou-se ao ouvir “A pátria será honrada e amada; seus símbolos serão respeitados e usados com orgulho cívico, no sentido mais legítimo, mas o cristão não poderá falar da pátria em categorias divinizadoras”.

Mas o semblante do presidente foi se fechando quando o manifesto passou a discorrer sobre os direitos humanos. O texto fala de “notícias alarmantes sobre práticas desumanas que estariam ocorrendo em nosso País”. Não acusa. Apenas constata que tais notícias corriam por aí.

O Manifesto de Curitiba não se intimida ao chegar, finalmente, ao ponto: “Entendemos mesmo, como Igreja, que nem situações excepcionais podem justificar práticas que violam os direitos humanos”. E é por esta determinação e ousadia profética que o Manifesto deve permanecer na história como um dos mais corajosos documentos já publicados pela IECLB.

Ele foi divulgado somente depois das eleições de 15 de novembro, num acordo com a Presidência, para evitar seu uso para fins eleitorais. “As lideranças da Igreja ficaram impressionadas ao ler o texto no jornal O Estado de São Paulo, que publicou o Manifesto na íntegra”, lembra o pastor Piske. “Este jornal vivia cheio de poesias e colunas pretas no lugar dos textos que haviam sido cortados pela censura”, completa.

O Manifesto de Curitiba, quarenta anos depois dessa ousadia luterana, continua sendo um marco. Num momento de euforia ideológica do Estado, que se agigantava em atitudes e leis anti-democráticas e repressoras, o Manifesto propõe reflexão sobre os princípios éticos em jogo e defende os direitos humanos.

Ao mesmo tempo, a IECLB oficializa, com aquele documento, o seu “inteiro apoio a quem se acha seriamente empenhado em coibir abusos cometidos e em oferecer ao mais humilde dos brasileiros – inclusive ao politicamente discordante – a absoluta certeza de que será tratado segundo as normas da mesma lei com a qual possa ter entrado em conflito”.

(Matéria escrita pelo blogueiro e publicada no jornal O Caminho, edição de outubro de 2010)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O velho homem diante da nova mulher

Um bom jeito de começar esta temática, é um trecho da coluna do Horácio Braun (Jornal de Santa Catarina), machista convicto “pero no mucho”. Num de seus engraçados textos, ele escreve: “Existe coisa mais querida no mundo que as mulheres? É claro que não! Mas, nem toda vida foi assim. Tanto isso é verdade que Petrarca, poeta italiano do período do Renascimento, no século 14, escreveu: ‘Inimiga da paz, fonte de inquietação, causa de brigas que destróem toda a tranqüilidade, a mulher é o próprio diabo’. Já Henrique VII, rei da Inglaterra e chefe da Igreja Anglicana no século 16, decretou: ‘As crianças, os idiotas, os lunáticos e as mulheres não podem e não têm capacidade para efetuar negócios’. Nisso tudo, a grande verdade é que Petrarca não conheceu Vera Fischer, e Henrique VII não conheceu a Dona Adelina...”

1. Machismo no DNA
A luta pela igualdade e as respectivas conquistas da metade mulher da humanidade é coisa muito recente na história. Desde o tempo das cavernas, na esmagadora maioria das culturas que participaram da formação cultural e social do homem, a mulher sempre sujeitou-se a um papel de submissão ao homem, com raríssimas exceções. O mundo e a sociedade sempre foram estruturados de forma patriarcal, há milênios. O mundo, portanto, sempre foi machista, do Oriente ao Ocidente.

As religiões orientais são todas machistas, do Budismo ao Islamismo. Há até a aberração do Talibã, que obriga a mulher a abandonar sua profissão, a enfiar-se em casa e a usar a Burka para cobrir todo o corpo. Como única exceção, havia espaço para a mulher médica, porque as demais mulheres se negavam a ser examinadas por médicos homens. No Afeganistão, mulheres foram apedrejadas até à morte porque parte do braço apareceu ao dirigir ou carregar algo sobre a cabeça. É a radicalização do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos.

Também Judaísmo e seu livro sagrado, a Torá, também são machistas, colocando a mulher em plano inferior ao homem. E o que é a Torá senão o Antigo Testamento, a base confessional sobre a qual foi erguido o Cristianismo, os evangelhos, as cartas paulinas, ou seja, o Novo Testamento e todo o mundo ocidental cristão, no qual vivemos. Portanto, numa frase: O Ocidente e seu livro sagrado, a Bíblia, também são machistas.

No Antigo Testamento, em Levíticos (12.2ss), por exemplo, se diz que a mulher se torna impura ao dar a luz, por causa da perda do sangue durante o parto. Quando nasce um filho homem o período de impureza da mulher dura 40 dias, mas quando é uma filha mulher este período aumenta para 80 dias.

Já no Novo Testamento, o Apóstolo Paulo, por exemplo, aconselha os coríntios a ficarem longe das mulheres, dizendo que “É bom que o homem não se case”. Segundo ele, no entanto, o casamento é uma boa solução para evitar a promiscuidade. Mas, logo em seguida aconselha os solteiros a “não procurar esposa”. Chega até a dizer aos noivos: “Quem casa com a sua noiva faz bem, mas quem não casa faz melhor ainda”. Em sua carta aos Efésios, ele aconselha as mulheres a serem “submissas a seus maridos”, porque “o marido é o cabeça da mulher, assim como Cristo é o cabeça da Igreja”, e arremata: “Portanto, as mulheres devem ser completamente obedientes aos seus maridos, assim como a própria Igreja é obediente a Cristo”. Na visão de Paulo, em vista de tudo isso a mulher deve calar-se dentro da Igreja.

Séculos de submissão e mudança radical
Pois é! Poderíamos continuar assim ainda por algum tempo, procurando por textos e situações que estabelecem claramente a posição do homem e da mulher na sociedade durante séculos, em quase todas as culturas humanas. Estes “princípios” se encarnaram de tal maneira nas sociedades, que se tornaram indiscutíveis, para ambos os sexos, ao longo de milênios. Isso era tão óbvio, que era ensinado como dogma, de geração em geração. O mundo patriarcal diminui a mulher e a coloca num plano inferior em relação ao homem. Curiosamente, entretanto, são as mães que mais se empenham para passar esta ordem das coisas adiante. O machismo no qual todos fomos educados foi e continua sendo caprichosamente ensinado pelas mulheres.

Mas, algo aconteceu no final do século 19, junto com a era da industrialização, e que virou o mundo conhecido até então do avesso. Tem uma música da saudosa cantora Maysa, que diz: “Meu mundo caiu / e me fez ficar assim! / Você conseguiu / e agora diz que tem pena de mim!”. O mundo “moderno” começa a ficar velho e tudo desaba. Todos os grandes fundamentos da modernidade começam a ser questionados. Vejamos:

• O filósofo Karl Marx faz profunda crítica ao modelo capitalista de sociedade;
• Albert Einstein põe em questão a noção de matéria e desenvolve a teoria da relatividade;
• Sigmund Freud desbanca a soberania do Eu e da consciência e detona: tudo é sexo;
• Friedrich Nietsche declara Deus morto e nem para a religião sobrou espaço;
• A ciência não construiu a eterna felicidade e mostrou seu poder de destruição (Hiroshima/Nagasaki);
• A natureza mostrou sinais evidentes de fadiga e deterioração com dramáticas conseqüências;
• Os grandes ideais revolucionários entraram num beco sem saída depois da Guerra Fria (Aqui no Brasil o PT ficou manso e bonitinho e o “sapo barbudo” aparou a barba e colocou terno e gravata);
• O futuro não é mais uma luz, mas uma caverna escura e deserta, ainda mais imprevisível depois de 11 de setembro de 2001;
• A mulher assumiu avidamente o lugar do homem nos negócios, no pastorado, no magistério, nas profissões mais importantes e com alto grau de sucesso, ameaçando ocupar cada vez mais também o espaço no comando executivo, legislativo e judiciário nos países ocidentais;
• Não bastasse a crescente e competente profissionalização da mulher, no Brasil e em muitos outros lugares do mundo ela agora também disputa com o homem os melhores postos na carreira militar, competindo até no espaço que era o mais exclusivo do macho, ou seja, fazer guerra;
• Uma degeneração generalizada dos costumes ameaça seriamente a família, o casamento e o relacionamento normalmente aceito entre homem e mulher, com proposta de união entre homossexuais e paradas gays em todos os lugares.

Neste mundo afetado por tantas transformações e revisões, também o modelo o modelo da sociedade patriarcal começa a ser questionado. Mudanças profundas no terreno trabalhista, o avanço das lutas feministas e a troca de papéis (homens cuidando da casa e mulheres tocando empresas) completam o estranhamento masculino. “Meu mundo caiu...” A humanidade decreta: é o fim do macho, no sentido do dominador, criado à imagem e semelhança de Deus e que cedeu somente uma costela para que dela fosse feita a mulher e que, portanto, veio ao Jardim do Éden com ordens expressas de dominar todas as coisas, inclusive a mulher.

A mulher deu o grito de liberdade há muito tempo e, com muita competência, vai ocupando seu espaço na sociedade patriarcal. Esta ação libertadora da mulher faz com que qualquer campo público ou privado, individual ou coletivo seja objeto de novas reflexões e novas ações. A mulher obriga a igreja cristã a repensar seus dogmas para o exercício do sacerdócio, ao exigir a ordenação feminina. A mulher disputa, em grau de igualdade, os melhores postos de trabalho do mercado e, não raro, com mais competência. A mulher e a liberação feminina obrigaram o mundo a repensar todas as relações, dentro e fora do relacionamento entre os sexos. Depois da liberação feminina, tudo é busca. Nem mesmo o homem escapa desta busca.

Senhores, nós poderíamos ir longe aqui agora, levantando exemplos de como a mulher foi, de forma segura e gradual, ocupando o lugar que tradicionalmente era dos homens na sociedade. Mas, penso que é hora de dar um passo adiante. É hora de decretar o fim da guerra dos sexos e de buscar novos paradigmas, que nos ajudem a conviver e a planejar um mundo bom para ambos e melhor para todos.

Sinto que depois da revolução feminista, que derrubou absolutamente tudo à nossa volta, chegou o tempo de abandonar a indiferença e a indignação diante da mulher liberta e lançar um projeto de busca de alternativas. Esta busca levanta algumas perguntas muito importantes e que precisam ser respondidas. A mais importante delas é: Qual é o novo papel do homem dentro desta sociedade remodelada, que nunca mais será a mesma, graças a Deus?

Sinto no próprio interesse de vocês em discutir este assunto um claro sinal de que os homens estão motivados a livrar-se de suas couraças e a buscar saídas. Sinto que não dá mais para sobreviver espremido entre a nova mulher e o velho homem que teima em permanecer vivo em nossas cabeças de machos rejeitados, desprezados e perdidos.

Mas, é preciso que fique muito claro para a metade homem da humanidade: este processo de reflexão e de busca somente será possível junto com a metade mulher da humanidade, porque nesta busca há um vínculo entre os sexos. Uma solução possível e satisfatória para ambos somente poderá ser uma solução comum a homens e mulheres. Mas, para que isso aconteça, homens e mulheres precisam abrir mão de velhos modelos.

Abrindo mão de velhos modelos
O processo de liberação das mulheres foi uma caminhada ascendente até os protestos da década de 60, em que queimaram sutiãs em praça pública e adotaram a minissaia como seu traje favorito, fazendo uma revolução sem precedentes na história da humanidade. Na definição de Celso Furtado, esta foi a “mais importante revolução do século 20”. Mas, hoje as mulheres estão percebendo que, em muitos casos, não conseguiram desprender-se da velha lógica machista da dominação escravo/senhor do passado. Tanto que Regina Valladares escreveu no Jornal do Brasil, em 1991: “Queimamos nossos sutiãs e o que aconteceu? Nossos peitos ficaram caídos!”. A chamada revolução feminina fez muito mais promessas do que conseguiu cumprir.

Enquanto a maioria das mulheres preferiu permanecer convivendo com o velho machão, mas protetor homem à moda antiga, uma boa parte delas fez surgir a mulher trabalhadora, liberada, cônscia de seus direitos, que não aceita mais passivamente os terríveis e desrespeitosos comportamentos do velho “boçalossauro”, como definiu Bernardo Jablowsky. As mulheres saíram debaixo do comando rígido deste ser pré-histórico e passaram a disputar lugar de poder e postos de trabalho com ele.

Mas, não perceberam que, ao lado da profissão fora de casa, continuaram com as tarefas do lar, da educação dos filhos, do objeto de cama e mesa ao qual estavam sujeitas antes. Em suma, num processo ilusório, as mulheres em muitos casos continuaram tão presas quanto antes e ainda mais escravas, pois agora tinham que somar ao papel da boa patroa e dona de casa o de ser humano tão competente quanto o homem e, quiçá, superá-lo em muitos aspectos. Então, muitas mulheres passaram a assumir uma imagem mais rígida, próxima da figura de poder que visualizavam no homem. Mas esta nova mulher não queria perder a feminilidade e não consegue livrar-se da ditadura da moda e dos institutos de beleza, por exemplo.

Desta maneira, a tão decantada liberação feminina aconteceu apenas em parte. A maioria das mulheres ficou no meio do caminho, sonhando com um mundo ideal que está muito distante do mundo real. Neste mundo real, elas têm uma dupla jornada de trabalho, salários desiguais, convivem com homens que têm a maior dificuldade em repartir as tarefas domésticas com elas, um forte sentimento de culpa por estar “abandonando” a família por falta absoluta de tempo e uma liberdade sexual na prática inacessível para muitas. Apesar deste aparente beco sem saída, no entanto, as mulheres avançaram muito, porque neste processo desenvolveram uma rica reflexão sobre sua condição na sociedade e conseguiram dar um grito de libertação espetacular.

Nós, homens, paramos no tempo e estamos acordando agora, perguntando, meio zonzos: “O que foi que aconteceu?”. Ainda precisamos, portanto, fazer esta auto-reflexão e, neste processo, ainda estamos quase na estaca zero. Ainda choramos o luto da perda do lugar do dominador, do qual fomos derrubados sem direito a defesa. E a maioria dos homens mergulhou de cabeça nestes tempos bem confusos e indefinidos, sem saber onde colocar o desejo, sem saber qual sua essência ou sem ter encontrado o mínimo fator comum de nossa masculinidade. O homem de hoje pergunta, perdido, o que significa exatamente ser homem. Mas, ao mesmo tempo, muitos já celebram o novo homem, mais liberto e próximo da mulher, pronto a dividir com ela o mundo do século 21.

Iniciando uma nova reflexão
O desmoronamento do modelo machista, ao qual estávamos tão acostumados, é muito mais uma possibilidade do que uma perda. Este talvez seja o primeiro gancho em que pendurar uma reflexão sobre nossa nova condição. Com a queda do modelo machista, senhores, não perdemos absolutamente nada. Ao contrário, ganhamos!

Precisamos do encontro dos dois gêneros (homem e mulher) fora dos costumeiros campos de competição e confronto, para que comecemos a compartilhar experiências, desarmar os ânimos, refletir e deixar que nos aproxime a amizade, o companheirismo e o desejo de construir em conjunto uma sociedade mais justa e igual para ambos. Penso que especialmente as comunidades cristãs podem ajudar os gêneros a refletirem em conjunto esta nova condição no relacionamento entre os sexos.

O primeiro passo na busca de algumas respostas importantes, é aprender que sexo e gênero são duas coisas diferentes. Durante muitos anos foram tratados como sinônimos. Na verdade, quando o assunto é sexo, nossos pensamentos são guiados por uma enxurrada de clichês, cujo epicentro é o argumento biológico. Ou seja, as mulheres acham que os homens pensam, agem e são de determinada maneira somente porque têm um pênis, ou seja, um instrumento que penetra a mulher e a devassa, invadindo o seu interior, implacavelmente. Esta é a tal da visão falocêntrica do mundo. Neste clichê, tudo o que os homens pensam, sentem e fazem tem a ver com este seu instrumento fálico penetrante, que do ponto de vista psicológico tem a aparência de um cetro, que dá ao homem a primazia do domínio. O pênis é o instrumento de poder masculino, de dominação sobre o sexo frágil. A mulher, neste mundo de clichês, ocupa o lugar de quem é submissa, a quem cabe o papel de se deixar penetrar.

O mesmo vale dos homens, que por força dos clichês impostos pela sociedade machista, encaram a mulher como um pedaço de carne pendurado no açougue dos desejos, imaginando que todos os seus pensamentos, atos e sentimentos giram em torno das divinas curvas do seu corpo e que todas as mulheres são Vera Fischer.

A pergunta a ser feita, é: Quem é o homem como gênero e não como a parte de armar do brinquedo do sexo? Quem é a mulher como gênero e não como a parte de encaixar do brinquedo do sexo? A anatomia é a parte menos importante para definir as características que diferenciam homens e mulheres. Por que o homem é e age de determinada maneira e a mulher de outra? Como estes dois seres tão diferentes em suas esperanças, desejos, reações e expressões, e ao mesmo tempo tão incomensuravelmente próximos e parecidos, podem se unir para chegar à realização, para construir um mundo mais humano, completo e parecido com o projeto original do Criador?

Também precisamos nos libertar da nossa prisão de provar a outros homens e mulheres que somos homens. Quanto maior é a insegurança interior, maior se torna a capa exterior com que nos cobrimos para provar nossa virilidade. Pode-se fazer musculação, ter opiniões políticas categóricas e defendê-las apaixonadamente, dirigir agressivamente, exibir força muscular ou habilidades esportivas ou até se negar a fazer tarefas que consideramos exclusivas das mulheres (lavar louça ou limpar a calçada)... há muitas maneiras de provar aos outros que se é viril. Mas, é uma prisão, uma casca em que toda a nossa sensibilidade de homem está enclausurada. Todos os problemas relacionados à carreira profissional, ao poder e ao dever vêm dessa insegurança, dessa fragilidade da identidade masculina.

Nós temos que provar o tempo todo que não somos viados, gente! E conhecemos muito bem a doutrinação neste sentido desde meninos. O que é esperado de um menino desde pequeno é que demonstre virilidade, agressividade e determinação. No que se refere à preferência sexual, um menino vive sob vigilância contínua, para que se saiba quão determinado é com relação à sua escolha. Se ele demonstra ternura, carinho ou dor, já começam a duvidar sobre sua escolha sexual. Para um homem, ter os afetos fora das trilhas definidas socialmente para eles é sinal de que a heterossexualidade não vingou. O homem sensível, o homem educado, o menino que não reage a brigas, enfim, qualquer um destes tipos recebe um olhar inquisidor que põe em dúvida sua preferência sexual.

Criados para a virilidade, temos dificuldade em falar o que sentimos. Não temos palavras para traduzir nosso mal-estar, nosso sofrimento, temos muita vergonha de falar sobre o que sentimos. Precisamos aprender a abrir a porta da nossa própria sensibilidade. O novo homem precisa retirar a máscara do guerreiro. O novo homem precisa perceber que não vai ser a postura, o tipo de roupa ou determinado comportamento que vão garantir sua virilidade.

Na verdade, toda esta nova situação coloca o homem num beco sem saída. Entre dor e sofrimento, o homem/macho descobre que quem ele vê ao olhar-se no espelho não é ele, mas é tudo aquilo que construíram nele: ele não pode ser um ser humano sensível e receptivo, porque foi transformado no bruto e insensível que tem que ser inquebrável, poderoso, viril. Ele é espremido contra a parede pelo milenar mundo dos machos, que o quer como sempre foi.

A psicologia masculina se caracteriza por suprimir (esconder) manifestações afetivas, como chorar em público, consideradas por alguns homens como sinal de fragilidade, por evitar situações interpessoais que possam torná-lo vulnerável, pondo em risco seu poder, como revelar sua vida íntima; e ainda pela incapacidade que o homem aparenta de mostrar empatia, especialmente em suas relações com as mulheres. Este tipo de comportamento milenar no homem traz consigo muito sofrimento e provoca a auto-opressão do próprio homem. O poder masculino, que parece trazer privilégios para o homem, também significa angústia e muita solidão existencial. Mesmo sabendo da angústia, muitos homens apresentam uma forte resistência em mudar seu comportamento.

Do outro lado, é espremido contra a parede por uma avalanche de novas exigências do mundo feminino, que não quer mais o macho dominador, mas o companheiro, carinhoso, aliado, solidário, que age de igual para igual. Mas que, ao mesmo tempo, não deve parecer fraco, feminino, delicado demais. Olha, é uma ginástica! É preciso desconstruir toda uma imagem antiquada e falida do homem guerreiro e construir uma nova, a do homem que deixa aflorar simplesmente o ser humano que é, sem deixar claro o tempo todo que é um ser humano macho. O homem deve lutar pelo direito de ser apenas humano.

A verdade é que todos estes milênios de condicionamento social nos fizeram associar masculinidade a independência, autonomia, autoconfiança, liderança nas relações de gênero e agressividade. A isto estão ligadas características como forte, autocrítico, aventureiro, arrogante, decidido, dominador, rude, desafiador e orientado para a realização. O homem de verdade é macho, silencioso, firme, provedor e, na hora H, resolve tudo sozinho e na base da pancada, pelo menos na visão dos filmes de Hollywood.

Por outro lado, a sociedade espera que as mulheres sejam sentimentais, fracas, gentis, compreensivas, emotivas, dóceis, dependentes, submissas, sensíveis e orientadas para os filhos. Na maioria dos comerciais a mulher aparece como objeto de desejo e consumo, que passa a calcinha e o sutiã com cerveja, para tornar-se mais apetitosa e, na hora de receber o seu homem na porta da casa, molha os lábios e o peito com cerveja, para tornar-se ainda mais irresistível. É assim desde que o mundo é mundo, mas esse tipo de relação entre os sexos não serve mais e vem provocando muito sofrimento.

Uma porta de saída
Como mudar? Olha, vou dizer já, não é fácil. Mark Twain disse: “A gente não se liberta de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau”. É preciso buscar maneiras de analisar estes comportamentos e buscar viabilizar mudança pessoal e transformação da consciência nos homens. O principal é que entremos num diálogo construtivo com as mulheres e com outros homens sobre a construção da sexualidade masculina. A mudança pode surgir a partir da conversa franca, aberta, entre homens e mulheres, com estratégias de aconselhamento grupal e psicoterapia de casais.

Homens e mulheres precisam parar de acusar-se mutuamente por todos os males da humanidade. Em vez de identificar um vínculo de simpatia e compreensão entre ambos, diante de um mundo que os tornou tão parecidos, as análises de gênero ainda não se desenvolvem na busca do encontro. Ainda se buscam generalizações e sempre partindo de fragmentos, partes que não percebem o todo. As feministas continuam achando que todos os homens são boçalossauros e os machistas continuam achando que as feministas querem tomar o lugar dos homens na sociedade. Ambos não perceberam que a mulher buscou e encontrou, ainda que de forma menos completa do que imaginavam, a nova mulher, e que o homem também está buscando abrir portas para novas possibilidades de pensar um outro tipo de homem que não seja o opressor e o estereótipo do qual falam as feministas.

O homem de hoje, neste conflito de personalidade, já tem dificuldade em definir a própria identidade masculina de forma clara. Se por um lado, aquele homem macho e avesso a sentimentos, criado por nossas mães e confirmado pelas tias dos colégios, já não serve mais e, em conseqüência, está perdido na poeira e não sabe quem é, por outro lado, não podemos parar de buscar este novo homem. Se os avanços sociais na sociedade e a nova mulher mudaram o mundo e desfiguraram a identidade do homem, ainda continua sendo verdade que, no fundo, dentro de cada um de nós, estudados ou não, continua latente o velho boçalossauro, que volta e meia se manifesta com toda a sua truculência e urgência da virilidade.

Segundo a estudiosa de gênero alemã, Rosvitha Scholz, a fim de enfrentar esta crise de modo produtivo, há que se constituir um feminismo e também um movimento de homens que tenham consciência do mecanismo de cisão entre ambos. Tanto homens quanto mulheres têm de compreender que “nossa” sociedade é determinada pelo patriarcado e pelo valor. Isso não exclui (ao contrário, torna ainda mais imprescindível) que as mulheres continuem a organizar-se autonomamente, e que os homens tentem ganhar consciência de si próprios nos movimentos masculinos. O patriarcado não é somente um mecanismo externo pelo qual nossa sociedade se organiza. Nós mesmos, homens e mulheres, somos o patriarcado, e o confronto direto entre os sexos é um dos aspectos centrais de sua crise.

Mas, além disso, é urgente a luta de ambos os sexos contra as formas de existência sociais nas quais tudo é classificado a partir do valor que tem. A superação do patriarcado é ao mesmo tempo a superação da forma fetichista da mercadoria, pois esta é o fundamento da cisão patriarcal. O objetivo revolucionário seria, portanto, um grau mais elevado de civilização, no qual homens e mulheres sejam capazes de fazer pelas próprias mãos sua história, para além do fetichismo e de suas atribuições sexuais.

O debate entre homens e mulheres é um espaço de luta e de reflexão que deve ser resgatado e fomentado, se quisermos um mundo mais digno, justo e humano para todos e todas. Neste processo, é preciso examinar os postulados que até agora nos pareciam invioláveis e sagrados. De nosso êxito nesta tarefa depende nossa sobrevivência como humanidade e, Deus queira, o fim da guerra dos sexos.

(Palestra sobre questões de gênero, proferida durante encontro sinodal da Legião Evangélica Luterana, do Sínodo Vale do Itajaí, em Blumenau)

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Paz na Criação de Deus

Preliminares
Em cima das argumentações teológicas do tema, trazidas no bloco anterior pelo pastor Hugo Westphal, e com a meditação da terra como pano de fundo, vou tentar puxar alguns registros para a abordagem do tema em nosso sínodo, nas atividades sinodais e nas nossas comunidades. Antes, porém, algumas confissões, fundamentais para que o nosso conhecimento sobre os aspectos teológicos e teóricos do tema possam, de fato, transformar-se em compromisso e este tornar-se ação concreta.

1. Nossos desafios à ação não vencem a etapa do discurso. Pode parecer conversa mole, mas temos que fazer um mea culpa como igreja luterana: A igreja da Palavra tem uma enorme dificuldade para agir. Somos bons em constatar crises e problemas, entretanto, até mesmo nosso desafio à ação não passa de um bom e velho discurso. Fica na conversa, com raríssimas exceções. Eu também não tenho praticado muito os meus discursos. Somos todos frutos do meio luterano em que nos criamos e movimentamos.

2. Mesmo nosso bom discurso não tem sido profético. Preferimos o anúncio. Fugimos da denúncia. Temos medo do compromisso da denúncia, não gostamos do rótulo que ela coloca na nossa testa. Vale aqui, como antídoto, a frase lapidar de Martin Luther King: “O que me preocupa não é o barulho dos violentos, e sim, o silêncio dos justos”.

3. Não temos valorizado nosso potencial como IECLB. Gostamos de dizer que somos uma igreja minoritária no Brasil. Isso serve como justificativa para a nossa falta de ousadia profética. Calamo-nos, alegando falta de tamanho. Escondemo-nos atrás da nossa pequenez em relação à Igreja Católica e, mais recentemente, em relação aos pentecostais. Gostamos de nos desculpar, dizendo que não temos influência. Entretanto, nossas co-irmãs latino-americanas invejam o tamanho e o potenci-al da IECLB. A Igreja Luterana de El Salvador não é maior do que a paróquia de Timbó, mas não se cala e não se furta em ser profética diante da dura realidade salvadorenha. Todas as igrejas luteranas latino-americanas juntas, fora a IECLB, não são maiores do que o Sínodo Vale do Itajaí. Por isso, afirmo e desafio: A IECLB não tem o direito de ficar na moita, com o tamanho que tem. Nós somos a força luterana em solo latino-americano.

Paz e guerra
O que entendemos ao afirmar que nosso objetivo é “Paz na Criação de Deus”? O que isso tem a ver com a nossa vida? Há algum tipo de guerra em nosso meio, no Vale do Itajaí, nas nossas paróquias e comunidades? Quando pedimos por “Paz na Criação de Deus”, estamos afirmando, antes de tudo, que há conflitos nesta criação. Tais conflitos caracterizam-se por diversas estruturas de caos, fontes de sofrimento e lágrima, espaços em que reina a injustiça, o medo do futuro (desesperança) e morte. Como cristãos, cujo fundamento da fé e da esperança é o reino dos céus, que traz vida, esperança, salvação, não podemos cruzar os braços e esperar que esses conflitos (guerra) dentro da Criação sejam resolvidos somente na Nova Jerusalém. Pedir por paz na criação de Deus é clamar por soluções já. Nossa esperança escatológica clama por sinais que animem e fundamentem nossa esperança.

Que tipo de paz estamos pedindo? O seu sentido teológico já foi suficientemente trabalhado pelo Hugo. Mas não se pode confundir Paz com uma boa sensação interior, no sentido de que estamos bem, “em paz”. Nesse sentido, é preciso ouvir a advertência de Sua Beatitude, o arcebispo albanês Anastasios de Tirana: “O significado cristão de paz interior não está relacionado à apatia ou alienação em relação ao que acontece ao nosso redor”. Há muita inquietude no ambiente. Há muitas guerras acontecendo bem debaixo do nosso nariz. Elas são identificáveis nas crises que atingem a nossa sociedade.

Precisamos descobri-las para nos posicionar. Não porque vamos solucionar todos os problemas, mas porque a sociedade espera o posicionamento da igreja diante dos problemas e crises que enfrenta. Às vezes, não gosta de ouvir a resposta que temos a dar a partir do Evangelho, mas se espera que haja um pronunciamento.

As crises e propostas de ação
No mundo atual, delineiam-se as seguintes crises, que se originam num ambiente de conflito, de falta de paz:

1. A crise ambiental – O planeta não suporta mais. Toda a criação geme, sob o jugo da existência humana sobre o planeta. A humanidade é hoje o grande câncer da Terra, que corrói suas entranhas, enquanto consome cada vez mais energia, exaurindo as forças do nosso pequeno planeta. Para continuar mantendo o atual ritmo de consumo energético da humanidade, o nosso planeta já não dá conta. Segundo os especialistas, há dois anos o limite suportável desse consumo foi ultrapassado e precisamos de mais de um planeta para continuar no ritmo em que estamos. Quebrou-se o equilíbrio da sustentabilidade, isto é, da capacidade de reposição da natureza em relação ao que dela é exigido.

A luz vermelha está acesa, e o atual modelo civilizatório está caduco, exaurido, equivocado... mas a humanidade não quer ouvir. As conferências mundiais sobre o tema fracassaram todas, retumbantemente. A humanidade não consegue estabelecer metas mínimas para tornar menos traumática essa relação com a natureza. Ela está em crise e o futuro próximo aponta na direção de um grande colapso energético no planeta. Todas as iniciativas e protocolos firmados até agora são band-aid na ferida do planeta. Redução de emissão de gases de efeito estufa, tecnologias que desenvolvam novas formas de energia (etanol, eólica, carros elétricos), leis para conter o avanço da exploração predatória do que restou das nossas florestas... tudo só para tapar o que já passou do ponto. A ferida está descontrolada. O planeta sangra sob o jugo da dominação humana. Enquanto os ambientalistas tentam emplacar algum tipo de controle, a economia mundial, baseada sobre os combustíveis fósseis, continua crescendo a tachas de 10, 12 por cento ao ano. É uma luta absolutamente inglória e perdida.

Alguns ambientalistas acusam a igreja de fomentar o domínio do homem sobre o restante da natureza com um uso equivocado da história da criação, uma vez que se pode depreender dela que o homem é superior às demais criaturas. Tal interpretação, acusam, dá ao homem a arrogância da primazia sobre as demais espécies. Segundo eles, o ser humano não está acima dos outros seres vivos, em relação à natureza, sendo a interdependência entre todos total e equilibrada.

Desculpem se pinto um quadro tão negro, mas eu sou um dos que tenho participado dessa pintura desde os anos 70 e tenho escutado muitos impropérios e visto muitos narizes torcidos, mas nenhuma tentativa séria de alterar a rota.

Para nós, aqui no Vale do Itajaí, temos as nossas próprias conseqüências a enfrentar, frutos da nossa indiferença e do nosso abuso para com a dadivosa natureza. Resumindo, a nossa valorosa sociedade de imigrantes acabou com a cobertura vegetal em menos de dois séculos. Quando eu era criança, eu morava bem do lado de uma fábrica de esquadrias. Diariamente eu via os caminhões lotados de toras chegarem à serraria. Eram dezenas todos os dias. Só a serragem do corte das tábuas formava montanhas à beira do rio Itajaí do Sul. No ano de 1968, esta fábrica pegou fogo. Não sobrou nada de pé. As montanhas de serragem na barranca do rio cozinhavam como vulcões ativos mais de meio ano depois daquele incêndio.

O que mais me chamava a atenção, avaliando a partir de hoje, era o desperdício da madeira. As primeiras tábuas de fato industrializadas somente eram recolhidas depois de cortar fora todo o brancal da tora. Só o cerne servia. E olha que no final dos anos 60 as toras vinham de cada vez mais longe. Nenhum perau escapava. Tudo foi dizimado. As últimas serrarias foram fechadas nos anos 80. Hoje, o ataque se repete, implacável, sem controle, sobre a Amazônia, a última fronteira virgem de flo-restas no Brasil.

O resultado para o vale? Bem, basta lembrar que no mês de fevereiro de 2011 o Samae interrompeu o fornecimento de água da cidade porque simplesmente não conseguia vencer a quantidade de barro que o rio trazia consigo. De onde vocês acham que vem este barro todo? No início dos anos 90 o Lauro Bacca me falou: “Se você sobrevoar a foz do rio Itajaí-Açu, vai ver uma língua de terra fértil para dentro do mar de mais de 20 quilômetros; tudo coisa que o rio trouxe das nossas lavouras”. O quanto os morros que descem podem causar grandes catástrofes e muitas mortes, também já sabemos e até podemos ensinar a outras regiões como enfrentar tudo isso.

Para nós e para o trato do tema nas nossas comunidades, como vamos lidar com isso? O que vamos fazer? Precisamos parar de assistir a tudo isso de braços cruzados e passar ser propositivos, com boas idéias que mudem o cenário. Como a comunidade luterana do Vale pode construir paz na criação de Deus aqui, diante deste quadro ambiental falido e para cuja destruição contribuiu fortemente no passado?

A crise ambiental, na nossa região, tem também a ver com a crise do aquecimento global. Basta olhar as taxas de crescimento do número de veículos nas nossas ruas. Ficamos chateados com os projetos atuais, que pretendem privilegiar o transporte coletivo (corredores exclusivos de ônibus), brigamos pelo direito de continuar andando com os nossos belos carrões e por espaço para andarmos com eles sem pisar muito no freio. Como trabalhar esta flagrante incoerência a partir das comunida-des? Que futuro estamos ajudando a construir, usufruindo de um mundo tão dependente do petróleo, como se nada pudesse nos acontecer num futuro muito próximo?

Como podemos apregoar “Paz na Criação de Deus”, se não somos capazes sequer de dar uma parada para avaliar o nosso próprio comportamento consumista e tentar, pelo menos tentar, elaborar alguns passos que mudem um pouquinho a cor do horizonte à nossa frente, que, repito, está lotado de nuvens bem negras? Ou seja, há muito que fazer, já, agora, neste instante. Se nada fizermos, o nosso discurso “ambientalóide” não passa de conversa mole, mentira, engodo. Continuar falando do batido papinho da reciclagem não é, realmente, um avanço neste momento. Infelizmente, é o que vejo como abordagem principal no material que a IECLB nos oferece sobre este tema.

Proposta concreta: Particularmente aqui no vale, atingidos pela catástrofe de 2008, é possível elaborar uma ação concreta a partir do sínodo? Um dos clamores do pastor sinodal Guilherme Lieven no Rio de Janeiro levanta uma questão muito pertinente também para nós no Vale: “Não estamos preparados para enfrentar tragédias de modo eficiente”, foi a constatação dele. Podemos caminhar propositivamente no sentido de planejar melhor para enfrentar tragédias climáticas? Porque, estejamos certos, elas virão novamente e, provavelmente, com intensidade ainda maior. Precisamos planejar as ações, determinar prioridades, estabelecer regras de ação, montar uma estratégia consciente. Podemos montar um grupo de trabalho que se ocupe com isso no sínodo? Vale aqui a regra de ouro dos ambientalistas, também para a nossa ação como IECLB: “Pense globalmente e aja localmente”.

2. A crise social – Não podemos falar de “paz na criação de Deus” enquanto não resolvermos o grave desequilíbrio social que insiste em nos separar entre ricos e pobres. A justiça é o pressuposto da paz. E não há justiça enquanto aumenta o fosso entre ricos e pobres. Porque o problema principal é que, enquanto 20% da humanidade acaba com o planeta, consumindo 80% de tudo o que se produz e de todos os recursos do planeta, a maioria pobre sempre sofre as consequências mais dramáticas da agressão ambiental.

O prefeito de Manaus, Amazonino Mendes, tascou um “Então morra!” a uma moradora de área de risco que disse a ele que as pessoas que vivem ali não escolheram isso, mas não têm condições de construir moradia digna.

Além da pobreza, a crise social é a grande fomentadora da violência. Não adianta falar em segurança pública, leis mais rigorosas, redução da idade penal, mais policiamento nas ruas etc., enquanto não nos posicionarmos claramente por substancial melhoria na distribuição dos bens produzidos pela nossa sociedade. É o bem-estar social que produz a paz. Quanto maior a parcela da população com acesso aos bens produzidos pela sociedade, mais claramente é possível identificar a violência realmente com atos violentos oriundos de distúrbios psicológicos, desvios de com-portamento etc. E também mais fácil será lidar com esses casos.

Por falar em violência, pedir por Paz na Criação é também enfrentar a violência doméstica, a violência contra as mulheres, a violência contra as crianças, a violência contra as pessoas com deficiência. Há muitas lacunas aqui. Um rápido levantamento do sínodo, nos grupos de OASE, poderá constatar o quanto esse tipo de violência anda à solta também em nossas comunidades. O que fazer? Há idéias concretas? Podemos elaborar um projeto sobre isso?

3. A Crise Religiosa – Hans Küng sintetiza a necessidade de paz religiosa como base da paz entre os povos e nações nestas contundentes palavras: “Não haverá paz entre as nações se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões se não existir diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais. Nosso planeta não irá sobreviver se não houver um etos global, uma ética para o mundo inteiro”.

Colegas, particularmente neste aspecto, a humanidade está entrando num beco sem saída, levantando sistematicamente o cenário para a próxima guerra mundial. O crescente endurecimento das relações entre o ocidente e o oriente tem uma das principais origens no confronto religioso. Resumidamente, basta só lembrar o uns e-mails que andam circulando por aí, um deles da igreja Batista, mostrando com números alarmantes um futuro negro da humanidade sob domínio do islamismo. Isso é incitamento religioso da pior espécie.

Mas também nós, em pleno inverno ecumênico, precisamos melhorar muito o nosso inter-relacionamento entre as igrejas que nos cercam. Vivemos numa guerra disfarçada. Celebramos “festas” ecumênicas, mas no dia-a-dia da vida comunitária nos combatemos e condenamos mutuamente. Coisas como “esse batismo não vale”, “tem que ser tantos padrinhos dessa confissão”, “com aquela igreja não me sento”, etc. são apenas algumas demonstrações. Em vez de ser propositivos e positivos, preferimos condenar, comparar, nos enaltecer diante do outro. O que podemos fazer para melhorar? Podemos construir uma proposta, a partir do tema do ano, dentro do movimento ecumênico, para melhorar as relações com outras confissões? Está bom assim como o movimento ecumênico vem caminhando no Sínodo ou podemos melhorar isso e como podemos melhorar? Será que 12 anos de convívio tríplice (católicos, IECLB e IELB) é suficiente ou precisamos avançar? Vamos envolver os outros também, que são muitos no Vale?

Mais do que isso, precisamos de um plano permanente de combate à intolerância em nossas comunidades. Como podemos organizar isso? Já há iniciativas concretas? Quais? Podem ser repetidas e incrementadas?

Regra de ouro: Eu só posso esperar aceitação quando sou capaz de aceitar os outros como são.

MARCANDO O TEMA
Todas as ações e estudos do tema do ano nas comunidades, entretanto, não deveriam nos dar por satisfeitos. Precisamos marcar a presença luterana no Vale. Somos um grupo forte, representativo. Talvez, se quisermos, até podemos nos tornar ainda mais fortes, unindo-nos aos irmãos de outras confissões. Para que? Um ação que marque a nossa presença, como cristãos, no Vale do Itajaí.
Proponho, por isso, formar uma comissão (a partir do sínodo, do núcleo ecumênico, enfim...) para elaborar um evento para o dia 22 de maio, data marcada mundialmente para celebrar, em todo o mundo cristão, a Convocatória Ecumênica Internacional pela Paz.

A convocatória em si acontecerá de 17 a 25 de maio, em Kingston, Jamaica, para manifestar e fortalecer nossos esforços conjuntos na busca do objetivo de superar a violência, proposto pelo CMI. A celebração da convocatória foi aprovada pela 9ª Assembléia em Porto Alegre (2006). Na Jamaica estará reunida uma ampla diversidade de pessoas que dão testemunho da paz de Deus como dom e responsabilidade de toda a família humana, para fortalecer a posição da igreja en relação à paz, ofere-cer oportunidades para estabelecer relações, e aprofundar nosso compromiso comum em favor dos processos de reconciliação e de paz justa.

O fundamento teológico da CEIP é o apelo ecumênico à paz justa e a elaboração de uma teologia ecumênica da paz. O apelo à paz justa se entende como “um processo coletivo e dinâmico, mas arraigado de libertação dos medos e carências dos seres humanos, de superação da animosidade, da discriminação e da opressão, e de estabelecimento de condições para relações justas que privilegiem a experiência dos mais vulneráveis e respeitem a integridade da criação”, diz texto de estudo preparatório ao evento.

Os objetivos da convocatória são:
• celebrar a paz de Deus e a boa vontade do povo de Deus;
• trabalhar na elaboração de nossa teologia da paz e para abandonar toda justificação teológica da violência;
• compartilhar nossos relatos sobre fracassos e êxitos e ouvir exemplos de boas práticas;
• equipar-nos com instrumentos criativos e eficazes para evitar e superar a violência e promover a paz e a justiça;
• comprometer-nos em favor de uma teologia e prática da não-violência, a paz e a justiça;
• proclamar uma Declaração Ecumênica sobre a Paz Justa.

O Domingo Mundial pela Paz, 22 de maio de 2011, será um acontecimento mundial, as igrejas de todos os cantos do mundo são convidadas a celebrar o dom da paz que Deus nos dá. Os que participam estarão unidos em espírito, nas canções e na oração com a Convocatoria Ecumênica Internacional pela Paz na Jamaica, unidos na esperança da paz. Quando as comunidades de cada fuso horário se reunirem para o culto e a oração no domingo, 22 de maio, uma onda de louvor e oração pela paz rodeará o mundo. O objetivo é marcar a nossa participação com um evento público, nesse dia.

(Palestra proferida na Conferência Ministerial do dia 1º de março de 2011 no Sínodo Vale do Itajaí)

Mãe Terra

Material: Um recipiente cheio de terra fértil e úmida da horta.

Tijolo Meditativo 1: Alguns cantos próprios para meditar. O canto permite que seja criado um clima propício para meditação individual e coletiva. Outra forma de conse-guir um clima adequado é por meio de música suave de fundo.

Tijolo Meditativo 2: “Quando o Deus Eterno fez o céu e a terra, não haviam brotado nem capim nem plantas, pois o Eterno ainda não tinha mandado chuvas, e não havia ninguém para cultivar a ADAMAH. Mas da ADAMAH saía uma corrente de água que regava o chão. Então, do pó da ADAMAH, o Deus Eterno formou o ADAM. Ele soprou no seu nariz uma respiração de vida, e assim esse ser se tornou um ser vivo” (Gênesis 2.4b-7).
ADAMAH = Terra; ADAM = Criatura da Terra (ser humano). O parentesco não é apenas fonético. Ambos têm a mesma origem. O mesmo DNA. São a mesma coisa. A terra e o ser humano: sangue do mesmo sangue; vida da mesma vida.

Canto: CIO DA TERRA (Milton Nascimento e Chico Buarque)

Tijolo Meditativo 3: (Dinâmica: Preparar um ou mais recipientes com terra. Deixar passar entre os participantes. Cada um enche a mão de terra. Cantar durante a passa-gem da bacia.)
Sinta a terra que está em suas mãos. Deixe que ela fale a você. Medite sobre esta proximidade entre você e a terra. Gente da cidade tem tão pouco contato com a terra. E, quando tem, há um relacionamento traumático. Vamos tornar este rela-cionamento em algo afetuoso, pedagógico, místico. Acaricie a terra. Sinta-a em suas mãos com alegria, respeito, admiração, reverência.
Quem quer compartilhar o que está sentindo?

Tijolo Meditativo 4: (Pensamentos meditativos do dirigente, com dicas abaixo)
ADAMAH = Terra. Sem terra não há vida. Ela é a própria fertilidade: esta mis-tura de minúsculas partículas de rochas e sais minerais, embevecida de água e restos orgânicos de animais e plantas. Parece morta, mas tem vida. Muita vida! E vida que, como um ventre materno generoso e incansável, gera nova vida inin-terruptamente; já há milhões de anos. É a ADAMAH – e não o ADAM – a maior força co-criadora de Deus na Criação. A ADAMAH é o próprio lado materno do Deus da Vida. Ela é seu útero, fértil e inesgotável. A terra é o útero de Deus. Por isso, a ADAMAH é, ela mesma, um ser vivo. O nosso planeta é um imenso ser vivo e no nosso único e intransferível habitat. Fora dele, não há chance de so-brevivência para nós.
A ADAMAH é o ADAM em estado bruto; o ser humano em estado primitivo; é a sua matéria-prima. É formado dela. Saiu do seu ventre para a vida. O ADAM, portanto, não está acima, além ou fora da ADAMAH. Ele é uma extensão dela. Ele é ela própria.
A relação do ADAM com a ADAMAH, por isso, deveria ser filial. Não há rela-ção mais estreita do que aquela entre a mãe e o bebê (na gravidez, no parto, na amamentação, no aconchego do colo). Na Criação de Deus, o ADAM é o bebê. A ADAMAH é a mãe, generosa e inesgotável, da qual depende a existência e a própria sobrevivência do bebê.
Mas ADAM abandonou sua relação filial com ADAMAH. Transformou-a numa relação predatória, mercantilista. O ser humano tornou-se inimigo da terra, con-denando-a à morte. Lentamente, vai tirando dela a fertilidade, a vida, a condição de ventre inesgotável da Criação, tornando-a em deserto. O útero virou boca de mina... e o próprio filho estupra a mãe. Essa relação incestuosa mata a mãe e in-viabiliza a sobrevivência do filho.
É possível voltar atrás? Somente enquanto redescobrirmos – neste punhado de terra em nossas mãos e na terra toda – a nossa relação filial com a ADAMAH. Somente enquanto enxergarmos na terra o lado materno do Criador. E princi-palmente, somente enquanto esta relação filial, mística com a ADAMAH, nos levar ao protesto diante das situações que transformam o útero do Criador em boca de mina; e enquanto o nosso testemunho constante levar outros a descobri-rem a ADAMAH como verdadeira essência do ADAM.
Sem tal conversão radical na maneira de enxergarmos o nosso planeta, não se-remos capazes de romper de modo eficaz a relação mercantilista que a humani-dade mantém com ele.

Tijolo Meditativo 5: Oração e cantos.

(Reflexão sobre responsabilidade ambiental, usada pela primeira vez no Acampamento Regional da Juventude Evangélica da extinta RE 2 da IECLB, em 1990)

Ascensão

Texto bíblico: Efésios 1.20-23

Estimada comunidade,

Hoje é dia de Ascensão, data do calendário da Igreja em que celebramos a subida de Jesus Cristo ao céu. É um evento um tanto difícil de explicar e até mesmo de crer. Quando os relatos da ascensão de Cristo foram escritos, o céu era um lugar muito bem definido. Era um lugar lá no alto, onde está Deus e todos os seres celestiais, inatingível para nós humanos, que vivemos aqui embaixo, na terra. Também estava muito claro que o lugar oposto ao céu é o inferno, um lugar lá embaixo, para onde vão as piores criaturas, aquelas que se afastaram de Deus e não dão a mínima para a sua vontade. Durante milhares de anos esta cosmovisão em três estágios era muito clara. Ninguém questionava isso. A nós, que vivemos aqui na terra, somente era permitido o acesso a este estágio que conhecemos, o nível do chão, o lugar que nos mantém presos e não há como ir lá para cima ou lá para baixo antes da hora.

Mas hoje em dia as coisas mudaram muito. Sabemos muito sobre o céu e ele até foi novamente visitado por astronautas americanos nas últimas semanas. Sabemos que o universo é imenso, que se expande e é formado por milhões de corpos celestes, estrelas, milhões de outras galáxias como a nossa Via Láctea, buracos negros e coisas ainda muito misteriosas, que só podemos ver com atraso de milhões de anos-luz, como uma foto do passado cuja luz chega até nós com bastante atraso. Dizem até que há diversos universos paralelos. Com todo o nosso conhecimento e diversas teorias científicas sobre o espaço, o céu ficou cada vez mais distante, indefinido e cheio de mistérios. Principalmente, ficou um lugar menos divino. O céu do século 21 deixou de ser o lugar onde moram Deus e os anjos e virou o lugar preferido dos astrofísicos, dos astronautas e dos ônibus espaciais.

Onde é, afinal, o céu para onde Jesus foi? O que quer dizer a informação um tanto estranha de que Jesus subiu ao céu? Ele também embarcou no ônibus espacial Endeavour e está em órbita do nosso planeta? Ou o céu ao qual essa comemoração do dia de hoje se refere é um lugar que fica a milhões de anos-luz distante de nós, em algum lugar escondido no universo? Ou será apenas uma visão simbólica, para dizer que Jesus agora assumiu o seu posto de comando, depois de enfrentar coisas terríveis neste pequeno planeta e retornar ao reino que abandonou para nos salvar?

Como até hoje nem os astrofísicos, nem os astronautas conseguiram encontrar um lugar misterioso que poderia ser um céu, também os teólogos não apostam mais na idéia de que Jesus, quarenta dias depois de sua ressurreição, teria ido parar num lugar que poderia ser localizado no universo conhecido. Para muitos teólogos, na verdade, o céu nem é um “lugar” para onde se possa ir. Para os teólogos, o céu é ali onde está Deus. O céu está ali onde está Cristo, o Senhor que foi “subido” ao céu pelo Pai. E este lugar pode ser aqui na terra, na forma como lidamos entre nós, seres humanos, bem como dentro dos nossos corações.

A verdade é que nós, seres humanos, gostaríamos muito que Deus estivesse num lugar específico, que tivesse um “endereço fixo”, com caixa postal, telefone, e-mail... Quem sabe, até um lugar onde nós pudéssemos chegar e tocar a campainha da porta, olhar nos olhos de Deus e expor nossas aflições, dores, tormentos, reclamações. Muitos até gostariam de ter uma espécie de céu que fosse uma caixa de reclamações, onde se pudesse colocar os nossos desejos e, principalmente, onde reclamar quando não somos atendidos. Talvez, nós quiséssemos um céu com SAC, um Serviço de Atendimento ao Consumidor... Isso seria ideal, no pensamento de muitos. A gente ligaria para reclamar, como na fábrica de eletrodomésticos. Afinal de contas, tudo hoje em dia deve ser administrado que nem uma empresa: a igreja, a escola, a casa da gente; por que não o céu também? O céu devia ter um SAC, pelo menos com um telefone 0800!

Onde é o céu? O que significa essa conversa de que Jesus subiu ao céu? Como podemos interpretar isso? O que o nosso texto bíblico de hoje quer ensinar sobre Ascensão?

Em primeiro lugar, todos nós sabemos desde os tempos de criança, no Ensino Confirmatório, que Deus é onipresente, ou seja, que ele está em todos os lugares ao mesmo tempo. Isto significa que, antes de mais nada, ele não tem um endereço fixo, do tipo “Céu”, onde possa ser encontrado. Isto significa que, muito menos ainda, ele tem a igreja como endereço, embora muita gente ache que Deus more dentro da igreja...

A Ascensão, ao contrário, mostra que Deus, em Jesus Cristo, tomou todas as coisas em suas mãos. Fazendo Jesus Cristo “retornar” para junto dele, Deus deixa claro que agora tem o comando nas mãos. Todas as coisas estão sob o seu guarda-chuva: “Pôs todas as cousas debaixo dos pés e, para ser o cabeça sobre todas as cousas, o deu à Igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as cousas” (1.22-23).

As nossas dores, os nossos clamores, os nossos medos e angústias, todas as nossas perguntas sobre o passado, o presente e o futuro, tudo está sob o comando de Jesus Cristo a partir do dia da Ascensão. O objetivo da história da ascensão é deixar claro que, depois de tornar-se humano, vir a este mundo para salvá-lo e reconstruir o que estava quebrado, Jesus Cristo retoma o seu lugar, volta ao comando de tudo, inaugura um novo tempo, em que tudo está sob seu controle. Ou seja, em resumo: a comemoração de hoje não celebra coisa pequena! No dia de hoje, Jesus assume o controle.

Mas isso é assim, mesmo? Muita gente pergunta: Se Deus está no comando, como pode acontecer tanta desgraça no mundo? Se ele está no controle, por que ele não coloca ordem na bagunça? Como ele aceita que a natureza se revolte a tal ponto de provocar tragédias como terremotos, enchentes, deslizamentos, tsunamis e outras catástrofes que provocam milhares de mortes? Como explicar a fome, a violência, o terrorismo, as guerras, a exploração do homem pelo homem, a morte dominando em todos os lugares e acontecendo todos os dias, um mundo cada vez mais confuso e cheio de problemas? Como ele permite que gente desonesta, sem ética e sem escrúpulos sempre tenha sucesso e progrida, tornando-se importante e assumindo o controle de tudo para puxar a brasa para o seu assado, em detrimento da maioria?

Se Jesus Cristo está no controle, como explicar também tanta coisa que acontece na minha vida pessoal, como falta de dinheiro, pobreza, o flagelo das drogas, da bebida e de doenças incuráveis? Onde está Deus, que não intervém, que não se manifesta e não ajuda? Por que ele se mantém calado, indiferente, em silêncio diante de tanta injustiça, e diante dos problemas de cada pessoa? Por que ele não dá um jeito no câncer ou na AIDS? Como ele permite que umas pessoas sejam exploradas por outras? Como pode que na minha família há tantas desgraças? Como pode que sempre dá tudo errado para mim? De que adiantam as orações se Deus não escuta?

Se nós prestamos bem atenção no que Paulo escreve nesse texto, também precisamos chamar atenção para um detalhe de extrema importância. Ele diz que Deus deu a Jesus Cristo todo o poder, sobre todos os poderes deste mundo. Ele está acima de tudo e de todos, inclusive acima da morte, que ele derrotou na Páscoa. Se Jesus Cristo não venceu a morte, podemos fechar esta igreja e ir para casa, chorar amargamente, porque absolutamente nada vai nos salvar. Estaremos perdidos e seremos as criaturas mais miseráveis do universo. Mas o fato de Jesus ter assumido todos os poderes não quer dizer que ele agora virou um mágico, um mago que tem uma varinha de condão nas mãos para ir resolvendo os nossos pedidos. Jesus não é uma lâmpada mágica que a gente esfrega para fazer pedidos.

O que diz o nosso texto? “Pôs todas as cousas debaixo dos seus pés e... o deu à igreja, a qual é o seu corpo”. Ou seja, Jesus é o cabeça da igreja e a igreja é o corpo de Jesus. À primeira vista, isto não quer dizer muita coisa. Mas pensemos bem: O que a cabeça faz? Ela pensa, decide, comanda o corpo, coloca-o em movimento, para executar tarefas. Quem é mesmo o corpo da cabeça que é Jesus Cristo? A Igreja! Então, quem tem que se mexer é a igreja. Quem tem que executar o comando da cabeça, é o corpo.

E o que nós aprendemos com o apóstolo Paulo, também? Que a igre-ja é um corpo feito de muitos membros (1 Coríntios 12.12ss). Quem são estes membros? Quem? Nós! Ou seja, nós – que fazemos parte da igreja de Jesus Cristo – somos as suas mãos, os seus pés, os seus ouvidos, a sua boca, o seu nariz, os seus olhos, o seu coração... Então, a mensagem é muito clara: nós somos os responsáveis por fazer acontecer neste mundo; nós é que devemos colocar mãos à obra para mudar a injustiça, a guerra, a fome, a violência, a dor; nós somos instrumentos nas mãos de Jesus Cristo, por meio dos quais ele age neste mundo.

Então, isso significa que um mundo melhor só depende de nós? Sim e não. Na verdade, seríamos muito pretensiosos se achássemos que podemos instalar o Reino de Deus em nosso meio por nossas próprias forças, com as nossas mãos. Muitos já tentaram isso, inclusive a primeira comunidade cristã, que vivia uma espécie de comunismo primitivo, em que não havia propriedade privada, tudo era de todos, havia um caixa comum, um depósito de alimentos para todos e cada um só pegava o que precisava para viver. Se tivesse dado certo, a Igreja de Jesus Cristo hoje seria bem diferente, não é mesmo? Aliás, é um mau testemunho e uma vergonha para todos os cristãos o fato de que este propósito da primeira comunidade tenha fracassado. Mas, ao mesmo tempo, é uma espetacular lição de que um novo mundo é possível e que não devemos desistir só porque não deu certo.

O que deve ser lamentado é o fato de que a realidade hoje é bem outra. A igreja hoje gosta do poder, é chegada num dinheiro que só, ama as coisas boas e está dividida em partidos e grupos como toda a a nossa sociedade. Já Paulo alertava que não dá para ser igreja de verdade com uns di-zendo que são de Paulo e outros afirmando que são de Apolo; precisamos todos ser “de Cristo”. Mas esta não é a realidade, tanto que o padre jesuíta Alfred Loisy disse, certa vez, decepcionado com o papel mundano da Igreja: “Jesus anunciou o Reino de Deus, mas o que veio em seu lugar foi a Igreja”. Então, está provado que não vamos conseguir construir o reino de Deus pelas próprias forças. Ele será definitivo, derradeiro, somente quando o Senhor que hoje subiu ao céu voltar, para trazer consigo tudo aquilo que anima a nossa mais profunda esperança.

Mas isso não significa que devemos parar. Somos chamados a colocar sinais, bem concretos, do Reino de Deus que Jesus Cristo iniciou. Somos desafiados a colocar sinais de que um outro mundo é possível. O céu será em cada lugar em que um sinal destes florescer. O céu acontece onde ajudamos o próximo, amamos o inimigo, respeitamos as diferenças, levamos paz e justiça, construímos um mundo diferente, que é possível através dos dons que nos são concedidos pelo Espírito Santo. E cada um, cada uma de nós recebeu dons para isso. Não para mudar o mundo sozinho, mas para colocar sinais. Por meio das nossas ações concretas, o céu de Jesus Cristo se instala aqui no chão, em qualquer lugar.

Portanto, no dia de Ascensão Jesus não nos foi retirado, mas tornou-se um bem acessível a todas as pessoas, por nosso intermédio, nós que somos a Igreja. Amém.
(Proferida no dia 02.06.2011, na IECLB-Pomerode/Apóstolo Paulo)