quarta-feira, 26 de junho de 2013

Ajuda em meio à crise



Texto: Salmo 145

I

Nós vivemos num mundo de horizontes largos. O nosso planeta, que em outros tempos parecia tão gigantesco, tornou-se uma pequena aldeia global. As notícias chegam a nós de todos os cantos do mundo na mesma hora em que os fatos acontecem.
Quem navega um pouco pela internet, fica por dentro de tudo assim que as notícias acontecem. Quando se chega em casa de noite, tira os sapatos e coloca um chinelo para sentar diante da TV e ver um jornal de notícias, tem-se a impressão de que está vendo um monte de notícias velhas, porque já sabíamos de tudo antes, pelas redes sociais, nas páginas da internet.
Mas uma característica não mudou, mesmo com a rapidez das notícias: elas continuam sendo quase sempre notícias ruins. O que vende é a tragédia, o escândalo, a notícia bombástica. Por isso mesmo, apesar de o nosso mundo ter se transformado numa aldeia, o que ouvimos é quase sempre algo relacionado a catástrofes, guerras, atentados terroristas, miséria, injustiça, violência no trânsito, assaltos, assassinatos e escândalos financeiros e políticos.
Nos últimos dias, particularmente difíceis, temos visto mortes, estupros, problemas graves na saúde, hospitais e médicos insensíveis com a dor dos outros e diversos escândalos.
A verdade é que esse tipo de notícia é que vende jornal e dá Ibope no rádio e na TV. Transforma-se a má notícia em boa notícia, pelo simples fato de que notícia ruim é sinônimo de lucro certo. E isso nos atinge; tem influência sobre o nosso modo de pensar, de sentir e de agir, ainda que tenhamos a clara consciência de que acontece muita coisa boa neste mundo, mas que não vira notícia, não aparece na TV e não interessa a quem “vende” notícias.
O problema é que, de tanto ver desgraça, injustiça e miséria, nos tornamos insensíveis e resignados. Afinal, é só mais uma desgraça entre tantas outras. Na hora a gente até fica indignado ou se emociona com alguma injustiça sofrida, mas em seguida já esquecemos e a nossa indignação não passa de um rompante. Assim, muitos de nós acabam desligando diante dessas notícias, porque simplesmente encheu. Não aguentamos mais! Deu!

II

Será esta a solução? Vamos simplesmente entregar os pontos e, como muitos andam fazendo na internet, simplesmente citar uma famosa frase de Ruy Barbosa, para dizer que não nos importamos mais?: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”
Talvez não devêssemos ser tão resignados. Talvez devêssemos buscar forças em Deus, para continuar acreditando e investido na ideia de que “um outro mundo é possível”. Um bom ponto de apoio para esta fé que não desanima, que não se entrega, talvez seja este texto que nos serve hoje de base para essa reflexão: o Salmo 145.
Este salmo surgiu numa época particularmente complicada da existência do antigo Povo de Israel. Também a vida do autor deste salmo não era nada fácil como um cidadão de Israel e os problemas que tinha que superar eram bem complicados. A metade da população do seu país havia sido varrida do mapa pelos assírios e a outra metade vivia desde o início de século 6 antes de Cristo sob o domínio dos babilônios.
A situação do povo que havia sobrado, em todos os casos, era bem difícil. As guerras haviam arrasado o país e detonado as poucas terras agricultáveis, de tal maneira que era quase impossível plantar qualquer coisa para comer. Por isso, havia fome e muita miséria.
Daquele Deus de Israel todo-poderoso e que ajuda o povo em tudo, do qual falavam os antigos, não havia quase nenhum sinal. A impressão que se tinha é que os deuses babilônios haviam também derrotado o Deus de Israel e agora mandavam e desmandavam naquele povo que, no passado, era o povo protegido de Javé. Com tudo isso, os israelitas sentiam-se como nós nos sentimos hoje. Havia muita resignação entre eles. Os problemas pareciam ser bem maiores do que as poucas forças que haviam restado em meio a tanta provação. E é justamente para dentro dessa situação que o salmista canta este seu hino do salmo 145, que queremos ler agora:
Leitura do texto: Salmo 145

III

Meus estimados, minhas estimadas! Vocês esperavam por isso? Como é que pode? Então, vivendo numa situação complicadíssima, quase sem saída, em que o próprio Deus parecia aniquilado, o salmista canta um hino de louvor desses? Não seria muito mais lógico lamentar, reclamar, protestar contra um Deus ausente e insensível?  O que será que leva o salmista a deixar de lado um caminho que nós até iríamos entender para derreter-se num hino de louvor a Deus?
É evidente que o salmista não quis juntar-se à choradeira geral do povo, botando ainda mais lenha na fogueira das lamentações. Com este salmo de louvor e exaltação de Deus, o salmista quer despertar um novo espírito entre a sua gente. Ele quer fortalecer a fé do povo no Deus criador e Senhor deste mundo. Ele quer levantar o ânimo do pessoal, evitando ser arrastado na mesma corrente do desespero geral que se instalou em meio àquela gente.
Seu objetivo é desviar a atenção do seu povo daquela depressão toda, apontando para outra direção, a direção do Deus todo-poderoso, do Deus que é capaz de superar necessidade e sofrimento. Contra todas as evidências, o salmista se fixa na convicção de que o Deus que criou este mundo também tem poder para resolver os problemas que afligem o seu povo.
E ele usa um caminho muito forte para convencer essa gente desanimada de que Deus era a única tábua de salvação: Ele já carregou este povo de modo espetacular no passado. Há muitas experiências que confirmam isso, e o salmista lembra: “O mesmo Deus que tirou os seus pais da escravidão do Egito, cuja mão poderosa derrotou o faraó para libertá-los naquela vez, também vai ajudar agora! O mesmo Deus que conduziu os nossos antepassados através do deserto e não lhes deixou faltar nada durante essa travessia de 40 anos, também vai tirar vocês das mãos dos babilônios. Ele se lembra que a Terra de Canaã é de vocês por herança e ele não vai deixar vocês longe da sua pátria.

IV

Mas o salmista também lembra que Deus não é o culpado da situação difícil que o povo atravessa. Quando o povo de Israel entrou na terra prometida, esqueceu-se dele e tornou-se um povo arrogante e desobediente. Em vão Deus enviou profetas para alertar o povo e trazer Israel de volta. E agora, tudo se repete. Há o juízo de Deus por trás dessa situação em que o povo se encontra. Deus é o Senhor todo-poderoso, que age na história.
Cara comunidade, o salmista também olha para a nossa realidade hoje. Com o seu texto iluminado, ele aponta para sinais bem claros da proximidade de Deus em nossos dias, essa proximidade que cada um de nós pode experimentar na própria pele em sua vida diária e bem pessoal. Em sua relação com Deus, pessoas resignadas encontram novo vigor para enfrentar as mazelas da vida. “O Senhor sustém os que vacilam e apruma todos os prostrados!”
E esse Deus que sempre cuidou do povo de Israel, também fez muito mais pela humanidade. Ele nos presenteou seu filho Jesus Cristo. Por meio dele, Deus nos diz: podem confiar! Eu sou um Deus que amo vocês incondicionalmente. Por isso mesmo, podemos, também hoje, em meio a todos os problemas que enfrentamos, cantar junto com o salmista: “O Senhor é bom para todos e as suas ternas misericórdias permeiam todas as suas obras”. Tudo o que Deus faz é sinal claro da sua bondade, da sua compaixão. Ou não é assim que, apesar de toda a agressão da humanidade à criação, continua havendo dia e noite, sol e chuva, terra fértil e uma natureza que produz com fartura? Em todos os outros aspectos da nossa vida, se pararmos um pouquinho para refletir, vamos descobrir a graciosa mão de Deus. Ainda assim, quando experimentamos dor ou sofrimento, privação ou necessidade, doença ou solidão, angústia ou luto, vamos encontrar Deus bem pertinho de nós.
Quem não conhece aquela história da pessoa que orou e cobrou Jesus: “Senhor, muitas vezes na vida precisei de ti e muitas vezes me senti só. Quando olho para as pegadas que deixei nas areias da minha vida, há muitos trechos em que vejo as tuas pegadas e as minhas. Mas também consigo ver muitos trechos em que há somente uma pegada na areia... Sinto que me deixaste só. E o Senhor lhe respondeu, meu filho, quando há somente uma pegada na areia, é porque eu estava carregando você no meu colo”.
Sim, cara comunidade, Deus nos carrega no colo, nos apóia e está sempre do nosso lado. E nós podemos sentir a sua proximidade através da oração. O que nos falta muitas vezes, é confiança.  Por isso vale, também hoje, ante a resignação que tanta notícia ruim faz crescer em nós: devemos confiar em Deus. Ele está conosco! Ele nos acolhe e nos ouve e tem compaixão de nós. E ele alimenta a nossa esperança, para que não resignemos, mas, confiadamente, apesar de todos os sinais em contrário, coloquemos sinais de que o nosso mundo pode ser diferente.
Comecemos por nós, por nossa família, por nossa comunidade. Aqui nós temos terra fértil para lançar sementes de paz, de justiça, de igualdade, de aceitação, de segurança e de amor! Que a inspiração seja o próprio Senhor, que teria tudo para resignar por nossa causa e dizer: realmente, não vale a pena investir mais nem um dia por esta humanidade ingrata. Mas ele não se entrega, e continua nos abençoando e presenteando. Que os presentes diários que Deus nos dá possam superar o falso sentimento de frustração e desânimo que quer nos invadir. Amém.

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Prédica proferida na Igreja Martin Luther, de Blumenau-Itoupava Seca, em 26.05.2013


terça-feira, 30 de abril de 2013

Convite para sonhar



Texto: Apocalipse 21.1-6

I

O apocalipse é um tema dramático e assustador, que já inspirou muitas histórias, livros, filmes e seriados de TV. Não falta criatividade para falar sobre o fim do mundo. Que o digam os diretores de Hollywood, que já abordaram o fim da nossa civilização por meio de guerras, invasões alienígenas, catástrofes climáticas ou algum vírus letal dizimando impiedosamente a humanidade. Que o digam também os incontáveis autores de livros sobre o fim dos tempos. Eles vendem milhões de exemplares. Ainda não faz tanto tempo que a história do calendário maia deixou muita gente maluca, por prever o fim dos tempos para o dia 21 de dezembro. Mais uma vez, uma previsão errada, que frustrou muitos.
Falar do apocalipse dentro da igreja também sempre atraiu muitos cristãos com suas dúvidas e perguntas a respeito desse livro repleto de mistérios. Parece que as pessoas têm uma espécie de relação forte com esse tema. Aliás, nós somos os únicos seres deste planeta que temos a clara noção de que, um dia, tudo vai acabar. E também somos os únicos que fazemos um grande drama em torno disso! Somos criativos ao extremo para imaginar bestas, anticristos, finais catastróficos para o mundo e um grande julgamento que, finalmente, vai dar o castigo merecido aos maus e a justa recompensa aos bons.

II

O texto bíblico que nos serve de reflexão no dia de hoje é um trecho do Apocalipse de João. Mas não tem nada de catastrófico. Ao contrário, transmite uma linda mensagem de paz e de esperança, que fala de um mundo totalmente novo, livre de todo sofrimento, onde Deus estará no comando. Mais! Neste novo mundo Deus vai construir a sua casa bem no meio das nossas e vai morar com a gente. É uma imagem belíssima, que nos inspira a sonhar. Isso, no meu entender, não tem nada a ver com todo esse catastrofismo que normalmente vem de carona quando o assunto é o apocalipse.
Por isso, hoje eu proponho inverter um pouco as coisas. Não vamos olhar o Apocalipse a partir de um futuro devastador e destrutivo, mas vamos olhar para ele a partir do passado. Vamos nos perguntar pelas razões que levaram João a escrever um livro que fala de um Deus forte e poderoso. João certamente tem muitos motivos para escrever este livro, mas um, em particular, chama muita atenção.
Este livro dirige-se à primeira comunidade cristã, um grupo bem pequeno de pessoas, que sofria feroz perseguição do poderoso império romano. O imperador, chamado de César, era adorado como um deus e ninguém sequer ousava questionar o seu poder ou as suas decisões. Com poder absoluto, o imperador era o chefe supremo, que escravizava e libertava, prendia e soltava, dava a vida ou decretava a morte. As pessoas em Roma eram obrigadas a adorar César como um deus, e quem não se sujeitasse ao culto ao imperador, era perseguido, oprimido e morto.
Para resistir a todo esse absolutismo, o livro de Apocalipse apontava para o futuro e dizia que não seria sempre assim. César tinha poder absoluto agora, mas Deus tem mais poder que ele. Deus é todo-poderoso! A comunidade cristã primitiva não tinha dúvida sobre isso. Deus tem muito mais poder do que o imperador romano. E ele não é só todo-poderoso. O seu poder não é totalitário, implacável, injusto. Deus é como um pai que pode tudo.
Interessante observar que a expressão “todo-poderoso” como adjetivo de Deus aparece nove vezes no Apocalipse, e somente outras três vezes em todo o resto do novo testamento. Para a primeira comunidade, que esperava a volta imediata do Senhor, não era o imperador romano que mandava nas coisas. Sabe por quê? Porque Deus não manda só no mundo, mas na própria história! Se ele é o Senhor da história, e pode todas as coisas, ele pode inclusive acabar com o império romano, ele também manda no imperador!
Mais ainda, os primeiros cristãos tinham a convicção de que isso valia especialmente nesses tempos de perseguição em que viviam. O imperador podia mandar prender, mas Deus era a liberdade. O imperador podia até mandar matar; Deus é mais poderoso do que a morte! Ele havia ressuscitado Jesus Cristo.
Por mais que o império romano fizesse de tudo para esmagar aquele grupo, mais ele se tornava forte e resistente, porque era movido pela certeza de que Deus é todo-poderoso. Aqueles cristãos resistiam e, nos subterrâneos do poderoso império romano, crescia clandestinamente uma igreja de gente convicta de que o seu Senhor era maior que César.
O combustível para a perseverança da primeira comunidade era a vitória de Cristo sobre a morte. Os romanos mataram o Senhor, mas Deus o ressuscitou! Deus ressuscita! E isso o imperador não tem poder de fazer!
Então, o livro de apocalipse, anunciando a destruição implacável do império romano e de todos os reinos desse mundo, anuncia que Deus vai fazer tudo novo, criando um novo céu e uma nova terra, onde ele vai construir a sua casa no meio da sua gente; Deus vai morar conosco! Em suma, ele vai cuidar de nós e não vamos mais ter nenhum tipo de problema, dificuldade, sofrimento, perseguição, tristeza ou carência. Vai haver justiça absoluta e paz plena; vida em abundância e salvação.

III

Não é um sonho maravilhoso? Eu penso que sim. É um sonho que ajuda qualquer um a enfrentar qualquer parada! Não há o que temer, porque o nosso Deus é maior do que todas as coisas!
Será que isso ainda vale em nossos dias? Será que nós também podemos abraçar o livro de Apocalipse a partir dessa interpretação e afirmar, venha o que vier, o nosso Deus é maior do que todos os problemas que nos venham a atingir? E se nós podemos abraçar essa esperança como uma coisa também válida em nossos dias, será que, então, nós também podemos sonhar? Eu penso que sim!
Por isso mesmo, eu os convido para sonhar junto comigo! Eu posso ver um mundo sem corrupção, sem guerras, sem fome. Eu consigo imaginar um mundo sem destruição ambiental e sem aquecimento global. Eu vejo um mundo em que as pessoas serão conhecidas pelo seu caráter e não pela cor da sua pele ou sua procedência. Posso imaginar um mundo em que todos têm alimentos, casa, roupas, saúde e vida plena. Em que as pessoas são iguais, sem qualquer distinção. Eu consigo sonhar com um mundo sem violência, onde as pessoas não são assaltadas ou ameaçadas para roubar, em que não há balas perdidas, estupros e assassinatos por motivos banais. Eu posso sonhar até com um mundo onde os juízes serão aposentados e as cadeias serão transformadas em hotéis e pousadas.
Vocês conseguem acompanhar o meu sonho? Sabem qual é o motivo de eu acreditar nele? O meu Deus, que arrancou Jesus Cristo das garras da morte, é mais forte do que tudo neste mundo. Ele é todo-poderoso! Quando eu afirmo isso no primeiro artigo do Credo Apostólico, eu realmente acredito. Por isso, a promessa de novos céus e de nova terra continua em vigor, quando ele diz essas palavras do nosso texto, que eu leio agora na linguagem de hoje:
“Agora a morada de Deus está entre os seres humanos! Deus vai morar com eles, e eles serão o povo dele. O próprio Deus estará com eles e será o Deus deles. Ele enxugará dos olhos deles todas as lágrimas. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor. As coisas velhas já passaram. Agora faço novas todas as coisas!”
Sabe, este texto me faz sonhar ainda mais. Ele me dá a certeza de que até mesmo as nossas dores pessoais estão contempladas. Você consegue sonhar até este ponto? Eu ajudo você! Sabe aquela sua depressão, que faz você se sentir um lixo? Ela vai acabar, porque Deus é maior do que a sua depressão. Entregue-se confiadamente em suas mãos e ele o acolherá! E aquele seu luto, a imensa saudade da pessoa amada que se foi? Deus é maior do que o seu luto e ele quer consolar você. Deus é até maior do que a morte! Ele quer enxugar as suas lágrimas. Ele tem um colo bem grande, para que você possa aninhar-se ali e pedir carinho... Não é bonito esse sonho?

IV

Eu acho! E ele não é um consolo barato, não! Ele é um desafio! Porque nós podemos sonhar tão confiadamente de que Deus é maior do que todos os nossos problemas e dificuldades, dores e medos, e confessar que ele é todo-poderoso, é que nós não podemos ficar de braços cruzados.
Aquela pequena comunidade nos ensinou isso de um modo muito bacana. Enquanto eles esperavam que o Senhor voltasse para trazer este novo mundo de justiça e paz, eles não ficaram de braços cruzados esperando. Eles dividiam o pouco que tinham entre si, ajudavam os pobres, consolavam os enlutados e davam todo o apoio às viúvas. O livro de Atos nos conta que eles tinham “tudo em comum”. Mesmo vivendo em lugares escondidos, eles louvavam a Deus e não deixavam de fazer missão. A esperança era o motor de tudo isso.
Nós também podemos fazer isso hoje. O nosso sonho de um Deus que vai mudar toda essa miséria do nosso mundo em coisa nova, quer ser experimentado já agora. Mesmo que seja a conta-gotas! Somos desafiados e desafiadas a colocar pequenos sinais e gestos que deixam claro que nós sabemos que a injustiça não vai ter a última palavra. Por isso, buscamos a justiça. Sinais que mostrem o quanto acreditamos que todos são iguais, não rejeitando quem é diferente, ou discriminando pessoas por causa da sua cor, da sua nacionalidade ou da sua aparência.
Sabe o que é a melhor coisa nesse sonho que estamos tendo aqui hoje? É que ele não se realiza a partir de grandes projetos políticos ou de revoluções, ou seja, ele não acontece a partir das ações de poderosos. Ele acontece na minha vida, na sua vida, na vida da nossa comunidade a partir de gestos bem pequenos, de experiências minúsculas que, por causa do poder que só o amor tem, viram gigantescas ações transformadoras e que trazem justiça, paz, vida, alegria, plenitude e salvação. E isso só acontece porque está conosco o Deus todo-poderoso, que é o Princípio e o Fim, o Alfa e o Ômega; aquele que, através do Cristo Vivo, renova todas as coisas. Amém.
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Prédica proferida na Igreja Martin Luther, de Blumenau-Itoupava Seca, em 28.04.2013


segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Jesus diz: "Esse cara sou eu!"



Texto: Lucas 4.14-21

I

Quando eu leio este texto, lembro do antigo ditado “santo de casa não faz milagre”. Ouso comparar este momento da vida de Jesus com um dos momentos mais críticos da vida de quase todos os pastores e pastoras da igreja. Quando vamos para o estudo de teologia, saímos de um lugar onde as pessoas somente se lembram de nós como crianças, das nossas travessuras e brincadeiras da infância. A minha infância também marcou as pessoas que me conheceram, na minha terra natal. Assim, é estranho para elas imaginar-me voltando para casa anos depois como pastor, para subir no mesmo púlpito de pregadores como o Praeses Stoer ou o pastor Ivo Lichtenfels.
É assim também com Jesus. Ele entra na sinagoga do lugar onde todos o viram crescer e o conheceram como moleque. Naquele tempo, qualquer pessoa podia entrar lá, ler um texto dos rolos sagrados e fazer uma explanação. Jesus faz isso na sinagoga de Nazaré, a terra onde cresceu. Todo mundo conhecia aquele filho do carpinteiro. Muitos já o viram arrumar uma porta, instalar uma janela ou trepado em algum telhado. Agora todo mundo se admira que aquele jovem ocupe o lugar da leitura dos rolos e fale sobre os textos sagrados.
Como qualquer judeu do seu tempo, Jesus podia escolher o texto. Mas vamos admitir que a mão de Deus o tivesse guiado para abrir exatamente aquele trecho do capítulo 61 do livro do profeta Isaías, nos versículos 1 e 2, no qual um mensageiro imbuído do espírito de Deus se considera ungido para “evangelizar os pobres, proclamar libertação aos cativos, restaurar a vista aos cegos, libertar os oprimidos e apregoar o ano aceitável do Senhor”.
A escolha desse trecho faz com que todo mundo naquela sinagoga se volte para Jesus, para ver o que aquele filho do carpinteiro vai dizer. E ele diz só uma frase, absolutamente desconcertante: “Hoje se cumpriu a escritura que acabais de ouvir”. Numa única frase curta ele diz aos seus conterrâneos nada menos do que o seguinte: “O tempo da salvação inicia por meu intermédio e através da minha pregação! Se vocês acreditarem na minha mensagem, podem ter parte neste tempo da salvação. Aqui está diante de vocês o cara do qual falam essas promessas bíblicas!”. Parafraseando o sucesso musical do momento, Jesus diz: “Esse cara sou eu!”.
É claro que essa atitude de Jesus não tem nada a ver com o que eu experimentei diante dos meus conterrâneos, em Rio do Sul, nas poucas vezes em que preguei naquela pequena igreja no alto do morro, depois de virar pastor. Eu jamais poderia dizer: “Esse cara sou eu”. Eu seria enxotado como charlatão, arrogante e presunçoso. Mesmo para Jesus aquela frase deu início a um tempo de muitos questionamentos e explicações, por afirmar que ele era o filho de Deus, o Messias, aquele que era esperado pelo povo de Israel para instaurar um novo reinado de paz e justiça.

II

Essas palavras de Jesus sempre criaram muita polêmica e discussão, fazendo com que as pessoas levantassem muitas perguntas. O que Jesus queria dizer aos seus conterrâneos e também a nós hoje? O que significa evangelizar e a quem ele se refere quando fala dos pobres? Será que Jesus fala somente de um tipo de pobreza espiritual, referindo-se a um vazio na alma, que precisa ser preenchido com o maravilhoso conteúdo da palavra de Deus? Ou ele se refere à pobreza material, à carência do básico para uma vida digna?
Bem, segundo os principais estudiosos e teólogos que analisaram essas palavras de Isaías e também a afirmação de Jesus, esta declaração do Messias refere-se em primeiro lugar a ele mesmo, que se apresenta. Eu sou aquele que vocês estavam esperando, o Messias, o Salvador. Depois, ele diz o que isso significa, em termos de mudanças já, aqui e agora, para Israel e o mundo em que vivemos. E, nesse caso, ele tem uma mensagem muito especial para os pobres. E Jesus não está dando nenhuma chance aqui de idealizar esta palavra, do tipo “pobres espirituais”. Jesus está falando dos miseráveis, daqueles que estão entre os fracos e excluídos da sociedade, das vítimas da injustiça.
Refere-se, por exemplo, a mais de um bilhão de pessoas no mundo que não têm o que comer e passam vários dias sem uma refeição completa. Refere-se também aos que não têm casa para morar, roupas para o frio, emprego para sustentar a família ou àqueles a quem se nega o básico para uma vida digna. Ele refere-se também aos deficientes (os cegos), aos presos e estropiados.
Mas Jesus não afirma isso para consolar essa gente e dizer que tenham paciência, pois no Seu Reino tudo vai mudar. Aliás, quando ele diz “esse cara sou eu”, ele não está afirmando que resolveria tudo num passe de mágica, do dia para a noite. E tem muita gente que ainda hoje cobra: como é que Jesus diz isso se dois mil anos depois continua havendo pobres, cegos, presos, estropiados e toda sorte de desgraça e injustiça? Nada mudou, realmente!
Então eu só posso deduzir que esta palavra dirige-se à parte da humanidade que pode fazer a diferença, ajudar, mudar as coisas. Dirige-se a gente como eu e você, que tem comida no armário e um teto sobre a cabeça.
Às vezes eu me pergunto por que e quando as pessoas se tornam duras e insensíveis a ponto de trancar os seus armários, as suas casas e os seus corações às necessidades dos outros. Sabe, em algum momento das nossas vidas quebra-se o encanto e o essencial é destruído.
Eu sempre fico impressionado como as crianças pequenas estão prontas a repartir... Tente pedir algo a uma criança de colo, e ela prontamente vai lhe estender o que quer que tenha na mão. É uma atitude espontânea, de compartilhar e repartir. Mais tarde, ela passa a recolher o braço, a esconder para que ninguém pegue o que é seu.
O que acontece conosco a partir de um determinado momento, que nos torna tão duros, insensíveis, egoístas? Que tipo de perversidade cresce dentro de nós, enquanto vamos “adultecendo”? Será que é a vida que nos afasta da infância solidária e generosa e nos transforma em solitários e gananciosos? Li uma frase nesses dias: “Devíamos ensinar aos nossos filhos o valor das coisas e não o preço delas”. Talvez estejamos mais preocupados com custos, em vez de dar valor à solidariedade. Mas eu desconfio que isso faça parte da nossa característica humana. O medo de não ter no futuro, de não agarrar o suficiente, de não ter em estoque, torna-nos ingratos e sovinas. A ambição está dentro das pessoas, como uma característica intrínseca. Mais do que um impulso incontrolável, ela pode tornar-se uma desgraça. Obcecados pelos próprios desejos, somos capazes de privar os outros do mínimo para a vida.
Leon Tolstoi conta a história de um homem a quem foi prometida uma área de terra do tamanho que quisesse, desde que arasse em um só dia um sulco ao redor da área que pretendesse ter. Ele começou bem cedo, imaginando um sítio de bom tamanho para sustentar a família. Na metade da manhã, ele começou a achar que a área era muito pequena para todos os sonhos que foi construindo enquanto segurava o arado. Julgou que devia ampliá-la. Passo a passo, foi seguindo seus sonhos. Dizia que era para a família, que os filhos comeriam melhor e a esposa usaria roupas finas. Ao meio dia, os seus sonhos o tornaram impaciente. Precisava de mais terra! Incita os cavalos, para apressar seus passos.
Enquanto os sonhos crescem, ele nota que o sol está descendo no horizonte e o dia acabando. Devia voltar ao ponto de partida ou perderia tudo! Em pânico, avança aos tropeços. Quando o sol chega ao horizonte, o marco da chegada estava bem diante dele. Seu coração disparado acelera a cada passo, o estômago começa a doer e seus músculos endurecem. Mas tinha de chegar! A poucos passos do fim, ele sucumbiu sob o esforço. Caiu e morreu de ataque cardíaco, para ser enterrado em um único pedaço de terra que media um metro e oitenta por noventa centímetros.

III

Esta ambição intrínseca descrita por Tolstoi nos move a todos. Por isso mesmo, essa palavra de Jesus tem tudo a ver com o fato de que, de toda a comida produzida no planeta, a metade (sim a metade!) é perdida ou jogada no lixo, porque fazemos estoques para esperar um preço melhor e depois jogamos fora porque o sabor ficou alterado ou as frutas estão manchadas.
A palavra de Jesus tem a ver com milhares de crianças africanas ou nordestinas que sofrem das doenças da subnutrição e morrem por causa delas, só porque nós nos damos ao luxo de ter a geladeira e a despensa lotada a ponto de ter que jogar coisas fora porque passam da validade ou estragam. Para Jesus, o “evangelho” (que significa boa notícia!) para essa gente representa vida em abundância. E é isso que Jesus traz quando diz que veio “evangelizar os pobres”.
Em nosso louco e insensível egoísmo da sociedade da acumulação, não temos espaço para o que Jesus chama de “apregoar o ano aceitável do Senhor”. Esta palavra refere-se ao antigo “ano da graça”, ou “ano sabático” do antigo testamento. Segundo a Lei de Moisés, em Levítico 25.8ss, a cada 50 anos devia acontecer um “ano da graça”, em cujo “dia da reconciliação” todos os escravos deviam ser libertados e as dívidas perdoadas. Os que perderam a terra por causa da dívida a receberiam de volta; os endividados receberiam o perdão de suas dívidas e poderiam recomeçar do zero.
Só que essa lei mosaica nunca saiu do papel em Israel e esse tal “ano da graça” jamais aconteceu realmente. Ele sempre era adiado ou negligenciado. Ou seja, a bonita lei do perdão das dívidas era empurrada com a barriga por conta da velha “ambição intrínseca” descrita por Tolstoi, e que nos atinge a todos. Tanto que, por conta disso, os profetas assumiram essa ideia para as suas profecias da chegada do Messias, que iria trazer tal libertação em nome de Deus, ou seja, “apregoar o ano aceitável do Senhor”. O perdão da dívida virou uma promessa para quando o Salvador viesse. Ou seja, o Messias devia resolver o que era para ser feito por todos...

IV

Quando Jesus diz “esse cara sou eu”, ninguém naquela sinagoga o interpela e faz perguntas. Na verdade, ninguém está muito interessado em saber como iria se realizar o cumprimento da promessa da chegada do “ano aceitável do Senhor”, ou seja, do “perdão das dívidas”. Nem mesmo depois, quando apesar dos milagres de Jesus ainda há um monte de pobres, cegos, presos e excluídos no mundo. Também os moradores de Nazaré queriam admirar aquele carpinteiro que virou pregador; queriam um milagre dele, mas não queriam refletir sobre o conteúdo da sua mensagem. E ele foi rejeitado pelos seus conterrâneos, que o ameaçaram e só não o mataram porque ainda não era hora.
Também hoje em dia as pessoas não sabem bem o que fazer com este Jesus, que afirma tão categoricamente que “hoje se cumpriu esta palavra”. Como assim, se continua havendo tanta miséria, dor e sofrimento? Como assim, se há tanta pobreza? Onde está o “ano aceitável do Senhor”? Já se passaram dois mil anos e o mundo continua absurdamente mergulhado em milhões de necessidades e desgraças de toda ordem.

V

Cada novo ano, também este ano de 2013 que está diante de nós, é um “ano aceitável do Senhor”. Quem confia em Jesus Cristo, escolheu aquele a quem foi dado “todo o poder nos céus e na terra”, e também sobre tudo o que quer nos oprimir neste novo ano.
Por Jesus ter vindo como aquele que anuncia o evangelho aos pobres, presos, cegos e excluídos, nós somos diretamente envolvidos na tarefa de mudar a realidade dos que sofrem. Não vamos nos satisfazer apenas em anunciar a salvação das almas, mas lutar por vida em abundância. Não vamos nos empenhar só para que conheçam Jesus e creiam nele, mas nos importar com o desemprego e a fome, a doença e a falta de liberdade, o ambiente de conflito em que vivem, a hostilidade da exclusão que enfrentam. Vamos nos informar para saber onde ajudar, nos envolver em ações sociais ou participar com doações.
Para nos envolver na tarefa de anunciar o “ano aceitável do Senhor”, precisamos tomar a decisão de dar a volta no nosso arado da ambição e fechar o círculo em volta do que pretendemos. Só podemos contribuir na tarefa de anunciar o evangelho quando nos livramos da “ambição intrínseca”, quando dizemos que o que temos é suficiente para nós e também para ajudar.
Porque, é importante saber, assim como as coisas que estocamos em demasia se perdem, são atacadas pelo mofo e apodrecem, também a graça de Deus tem prazo de validade. E ela se extingue exatamente quando ultrapassamos o ponto de voltar com o arado para fechar o círculo, dizendo: “Está de bom tamanho! Não preciso mais. Posso repartir, ajudar, melhorar a vida do outro”. É neste momento que também para nós Jesus traz o “ano aceitável do Senhor”, perdoando a nossa dívida, preenchendo-nos com a sua graça.
Quando adiamos esta decisão, por conta da nossa “ambição intrínseca”, podemos ter um ataque cardíaco antes de fechar o círculo. E então, a nossa recompensa será somente um pedaço de terra de um metro e oitenta por noventa centímetros. E é então que também nós nos tornamos pessoas pobres em espírito, presas à nossa ambição, cegas para Cristo e para o próximo, de mente pequena e esmagada. Precisamos do auxílio de Deus, de sua presença e de seu amor, porque estamos amarrados ao nosso Eu e não conseguimos nos libertar do egoísmo sem que Deus nos ajude.
Que neste novo ano Deus nos liberte da ambição intrínseca e nos transforme, para que 2013 seja, também para nós, o “ano aceitável do Senhor”.
Amém.
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Prédica proferida no culto do dia 27.01.2013 na igreja Martin Luther, no bairro Itoupava Seca, em Blumenau.