segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Jesus diz: "Esse cara sou eu!"



Texto: Lucas 4.14-21

I

Quando eu leio este texto, lembro do antigo ditado “santo de casa não faz milagre”. Ouso comparar este momento da vida de Jesus com um dos momentos mais críticos da vida de quase todos os pastores e pastoras da igreja. Quando vamos para o estudo de teologia, saímos de um lugar onde as pessoas somente se lembram de nós como crianças, das nossas travessuras e brincadeiras da infância. A minha infância também marcou as pessoas que me conheceram, na minha terra natal. Assim, é estranho para elas imaginar-me voltando para casa anos depois como pastor, para subir no mesmo púlpito de pregadores como o Praeses Stoer ou o pastor Ivo Lichtenfels.
É assim também com Jesus. Ele entra na sinagoga do lugar onde todos o viram crescer e o conheceram como moleque. Naquele tempo, qualquer pessoa podia entrar lá, ler um texto dos rolos sagrados e fazer uma explanação. Jesus faz isso na sinagoga de Nazaré, a terra onde cresceu. Todo mundo conhecia aquele filho do carpinteiro. Muitos já o viram arrumar uma porta, instalar uma janela ou trepado em algum telhado. Agora todo mundo se admira que aquele jovem ocupe o lugar da leitura dos rolos e fale sobre os textos sagrados.
Como qualquer judeu do seu tempo, Jesus podia escolher o texto. Mas vamos admitir que a mão de Deus o tivesse guiado para abrir exatamente aquele trecho do capítulo 61 do livro do profeta Isaías, nos versículos 1 e 2, no qual um mensageiro imbuído do espírito de Deus se considera ungido para “evangelizar os pobres, proclamar libertação aos cativos, restaurar a vista aos cegos, libertar os oprimidos e apregoar o ano aceitável do Senhor”.
A escolha desse trecho faz com que todo mundo naquela sinagoga se volte para Jesus, para ver o que aquele filho do carpinteiro vai dizer. E ele diz só uma frase, absolutamente desconcertante: “Hoje se cumpriu a escritura que acabais de ouvir”. Numa única frase curta ele diz aos seus conterrâneos nada menos do que o seguinte: “O tempo da salvação inicia por meu intermédio e através da minha pregação! Se vocês acreditarem na minha mensagem, podem ter parte neste tempo da salvação. Aqui está diante de vocês o cara do qual falam essas promessas bíblicas!”. Parafraseando o sucesso musical do momento, Jesus diz: “Esse cara sou eu!”.
É claro que essa atitude de Jesus não tem nada a ver com o que eu experimentei diante dos meus conterrâneos, em Rio do Sul, nas poucas vezes em que preguei naquela pequena igreja no alto do morro, depois de virar pastor. Eu jamais poderia dizer: “Esse cara sou eu”. Eu seria enxotado como charlatão, arrogante e presunçoso. Mesmo para Jesus aquela frase deu início a um tempo de muitos questionamentos e explicações, por afirmar que ele era o filho de Deus, o Messias, aquele que era esperado pelo povo de Israel para instaurar um novo reinado de paz e justiça.

II

Essas palavras de Jesus sempre criaram muita polêmica e discussão, fazendo com que as pessoas levantassem muitas perguntas. O que Jesus queria dizer aos seus conterrâneos e também a nós hoje? O que significa evangelizar e a quem ele se refere quando fala dos pobres? Será que Jesus fala somente de um tipo de pobreza espiritual, referindo-se a um vazio na alma, que precisa ser preenchido com o maravilhoso conteúdo da palavra de Deus? Ou ele se refere à pobreza material, à carência do básico para uma vida digna?
Bem, segundo os principais estudiosos e teólogos que analisaram essas palavras de Isaías e também a afirmação de Jesus, esta declaração do Messias refere-se em primeiro lugar a ele mesmo, que se apresenta. Eu sou aquele que vocês estavam esperando, o Messias, o Salvador. Depois, ele diz o que isso significa, em termos de mudanças já, aqui e agora, para Israel e o mundo em que vivemos. E, nesse caso, ele tem uma mensagem muito especial para os pobres. E Jesus não está dando nenhuma chance aqui de idealizar esta palavra, do tipo “pobres espirituais”. Jesus está falando dos miseráveis, daqueles que estão entre os fracos e excluídos da sociedade, das vítimas da injustiça.
Refere-se, por exemplo, a mais de um bilhão de pessoas no mundo que não têm o que comer e passam vários dias sem uma refeição completa. Refere-se também aos que não têm casa para morar, roupas para o frio, emprego para sustentar a família ou àqueles a quem se nega o básico para uma vida digna. Ele refere-se também aos deficientes (os cegos), aos presos e estropiados.
Mas Jesus não afirma isso para consolar essa gente e dizer que tenham paciência, pois no Seu Reino tudo vai mudar. Aliás, quando ele diz “esse cara sou eu”, ele não está afirmando que resolveria tudo num passe de mágica, do dia para a noite. E tem muita gente que ainda hoje cobra: como é que Jesus diz isso se dois mil anos depois continua havendo pobres, cegos, presos, estropiados e toda sorte de desgraça e injustiça? Nada mudou, realmente!
Então eu só posso deduzir que esta palavra dirige-se à parte da humanidade que pode fazer a diferença, ajudar, mudar as coisas. Dirige-se a gente como eu e você, que tem comida no armário e um teto sobre a cabeça.
Às vezes eu me pergunto por que e quando as pessoas se tornam duras e insensíveis a ponto de trancar os seus armários, as suas casas e os seus corações às necessidades dos outros. Sabe, em algum momento das nossas vidas quebra-se o encanto e o essencial é destruído.
Eu sempre fico impressionado como as crianças pequenas estão prontas a repartir... Tente pedir algo a uma criança de colo, e ela prontamente vai lhe estender o que quer que tenha na mão. É uma atitude espontânea, de compartilhar e repartir. Mais tarde, ela passa a recolher o braço, a esconder para que ninguém pegue o que é seu.
O que acontece conosco a partir de um determinado momento, que nos torna tão duros, insensíveis, egoístas? Que tipo de perversidade cresce dentro de nós, enquanto vamos “adultecendo”? Será que é a vida que nos afasta da infância solidária e generosa e nos transforma em solitários e gananciosos? Li uma frase nesses dias: “Devíamos ensinar aos nossos filhos o valor das coisas e não o preço delas”. Talvez estejamos mais preocupados com custos, em vez de dar valor à solidariedade. Mas eu desconfio que isso faça parte da nossa característica humana. O medo de não ter no futuro, de não agarrar o suficiente, de não ter em estoque, torna-nos ingratos e sovinas. A ambição está dentro das pessoas, como uma característica intrínseca. Mais do que um impulso incontrolável, ela pode tornar-se uma desgraça. Obcecados pelos próprios desejos, somos capazes de privar os outros do mínimo para a vida.
Leon Tolstoi conta a história de um homem a quem foi prometida uma área de terra do tamanho que quisesse, desde que arasse em um só dia um sulco ao redor da área que pretendesse ter. Ele começou bem cedo, imaginando um sítio de bom tamanho para sustentar a família. Na metade da manhã, ele começou a achar que a área era muito pequena para todos os sonhos que foi construindo enquanto segurava o arado. Julgou que devia ampliá-la. Passo a passo, foi seguindo seus sonhos. Dizia que era para a família, que os filhos comeriam melhor e a esposa usaria roupas finas. Ao meio dia, os seus sonhos o tornaram impaciente. Precisava de mais terra! Incita os cavalos, para apressar seus passos.
Enquanto os sonhos crescem, ele nota que o sol está descendo no horizonte e o dia acabando. Devia voltar ao ponto de partida ou perderia tudo! Em pânico, avança aos tropeços. Quando o sol chega ao horizonte, o marco da chegada estava bem diante dele. Seu coração disparado acelera a cada passo, o estômago começa a doer e seus músculos endurecem. Mas tinha de chegar! A poucos passos do fim, ele sucumbiu sob o esforço. Caiu e morreu de ataque cardíaco, para ser enterrado em um único pedaço de terra que media um metro e oitenta por noventa centímetros.

III

Esta ambição intrínseca descrita por Tolstoi nos move a todos. Por isso mesmo, essa palavra de Jesus tem tudo a ver com o fato de que, de toda a comida produzida no planeta, a metade (sim a metade!) é perdida ou jogada no lixo, porque fazemos estoques para esperar um preço melhor e depois jogamos fora porque o sabor ficou alterado ou as frutas estão manchadas.
A palavra de Jesus tem a ver com milhares de crianças africanas ou nordestinas que sofrem das doenças da subnutrição e morrem por causa delas, só porque nós nos damos ao luxo de ter a geladeira e a despensa lotada a ponto de ter que jogar coisas fora porque passam da validade ou estragam. Para Jesus, o “evangelho” (que significa boa notícia!) para essa gente representa vida em abundância. E é isso que Jesus traz quando diz que veio “evangelizar os pobres”.
Em nosso louco e insensível egoísmo da sociedade da acumulação, não temos espaço para o que Jesus chama de “apregoar o ano aceitável do Senhor”. Esta palavra refere-se ao antigo “ano da graça”, ou “ano sabático” do antigo testamento. Segundo a Lei de Moisés, em Levítico 25.8ss, a cada 50 anos devia acontecer um “ano da graça”, em cujo “dia da reconciliação” todos os escravos deviam ser libertados e as dívidas perdoadas. Os que perderam a terra por causa da dívida a receberiam de volta; os endividados receberiam o perdão de suas dívidas e poderiam recomeçar do zero.
Só que essa lei mosaica nunca saiu do papel em Israel e esse tal “ano da graça” jamais aconteceu realmente. Ele sempre era adiado ou negligenciado. Ou seja, a bonita lei do perdão das dívidas era empurrada com a barriga por conta da velha “ambição intrínseca” descrita por Tolstoi, e que nos atinge a todos. Tanto que, por conta disso, os profetas assumiram essa ideia para as suas profecias da chegada do Messias, que iria trazer tal libertação em nome de Deus, ou seja, “apregoar o ano aceitável do Senhor”. O perdão da dívida virou uma promessa para quando o Salvador viesse. Ou seja, o Messias devia resolver o que era para ser feito por todos...

IV

Quando Jesus diz “esse cara sou eu”, ninguém naquela sinagoga o interpela e faz perguntas. Na verdade, ninguém está muito interessado em saber como iria se realizar o cumprimento da promessa da chegada do “ano aceitável do Senhor”, ou seja, do “perdão das dívidas”. Nem mesmo depois, quando apesar dos milagres de Jesus ainda há um monte de pobres, cegos, presos e excluídos no mundo. Também os moradores de Nazaré queriam admirar aquele carpinteiro que virou pregador; queriam um milagre dele, mas não queriam refletir sobre o conteúdo da sua mensagem. E ele foi rejeitado pelos seus conterrâneos, que o ameaçaram e só não o mataram porque ainda não era hora.
Também hoje em dia as pessoas não sabem bem o que fazer com este Jesus, que afirma tão categoricamente que “hoje se cumpriu esta palavra”. Como assim, se continua havendo tanta miséria, dor e sofrimento? Como assim, se há tanta pobreza? Onde está o “ano aceitável do Senhor”? Já se passaram dois mil anos e o mundo continua absurdamente mergulhado em milhões de necessidades e desgraças de toda ordem.

V

Cada novo ano, também este ano de 2013 que está diante de nós, é um “ano aceitável do Senhor”. Quem confia em Jesus Cristo, escolheu aquele a quem foi dado “todo o poder nos céus e na terra”, e também sobre tudo o que quer nos oprimir neste novo ano.
Por Jesus ter vindo como aquele que anuncia o evangelho aos pobres, presos, cegos e excluídos, nós somos diretamente envolvidos na tarefa de mudar a realidade dos que sofrem. Não vamos nos satisfazer apenas em anunciar a salvação das almas, mas lutar por vida em abundância. Não vamos nos empenhar só para que conheçam Jesus e creiam nele, mas nos importar com o desemprego e a fome, a doença e a falta de liberdade, o ambiente de conflito em que vivem, a hostilidade da exclusão que enfrentam. Vamos nos informar para saber onde ajudar, nos envolver em ações sociais ou participar com doações.
Para nos envolver na tarefa de anunciar o “ano aceitável do Senhor”, precisamos tomar a decisão de dar a volta no nosso arado da ambição e fechar o círculo em volta do que pretendemos. Só podemos contribuir na tarefa de anunciar o evangelho quando nos livramos da “ambição intrínseca”, quando dizemos que o que temos é suficiente para nós e também para ajudar.
Porque, é importante saber, assim como as coisas que estocamos em demasia se perdem, são atacadas pelo mofo e apodrecem, também a graça de Deus tem prazo de validade. E ela se extingue exatamente quando ultrapassamos o ponto de voltar com o arado para fechar o círculo, dizendo: “Está de bom tamanho! Não preciso mais. Posso repartir, ajudar, melhorar a vida do outro”. É neste momento que também para nós Jesus traz o “ano aceitável do Senhor”, perdoando a nossa dívida, preenchendo-nos com a sua graça.
Quando adiamos esta decisão, por conta da nossa “ambição intrínseca”, podemos ter um ataque cardíaco antes de fechar o círculo. E então, a nossa recompensa será somente um pedaço de terra de um metro e oitenta por noventa centímetros. E é então que também nós nos tornamos pessoas pobres em espírito, presas à nossa ambição, cegas para Cristo e para o próximo, de mente pequena e esmagada. Precisamos do auxílio de Deus, de sua presença e de seu amor, porque estamos amarrados ao nosso Eu e não conseguimos nos libertar do egoísmo sem que Deus nos ajude.
Que neste novo ano Deus nos liberte da ambição intrínseca e nos transforme, para que 2013 seja, também para nós, o “ano aceitável do Senhor”.
Amém.
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Prédica proferida no culto do dia 27.01.2013 na igreja Martin Luther, no bairro Itoupava Seca, em Blumenau.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Lema do ano de 2013



“Eu sou o seu Deus. Eu lhes dou forças, ajudo e protejo com a minha forte mão” (Isaías 41.10).

Uma das palavras mais marcantes que eu já ouvi, veio da Dra. Margot Kässmann, num dos dias mais traumáticos da sua vida. A teóloga e pastora luterana havia ido longe, sendo presidenta da Igreja Territorial de Hannover, a maior do país, e tornando-se a primeira bispa de toda a Igreja Evangélica na Alemanha.

Mas a sua brilhante carreira sofreu dois revezes de arrasar. O primeiro foi um câncer de mama, que a bispa, mãe de quatro filhas e divorciada, enfrentou com fé e testemunho público. O segundo desnudou a líder brilhante e admirada da noite para o dia. A bispa dos protestantes alemães foi pega no bafômetro, por conta de um copo de vinho a mais após uma noite de conversas sobre planos e projetos.

No dia seguinte, a imprensa do mundo inteiro caiu sobre aquela mulher admirada, cobrando-lhe o deslize. Mas ela não se intimidou. Convocou uma coletiva de imprensa e, com humildade, renunciou ao cargo de bispa da Igreja Evangélica de Hannover e da Alemanha. Em seu pronunciamento, reconheceu o erro e disse: “Eu não posso cair mais fundo do que dentro das mãos de Deus!”. Esta frase, dita num momento tão crucial da vida de Kässmann, resume maravilhosamente o Lema da IECLB para 2013. A mão de Deus nos acolhe, mesmo quando não há mais saída. Acredite e confie!

(Publicado no jornal O Caminho de jan/fev 2013)