sexta-feira, 3 de junho de 2011

Ascensão

Texto bíblico: Efésios 1.20-23

Estimada comunidade,

Hoje é dia de Ascensão, data do calendário da Igreja em que celebramos a subida de Jesus Cristo ao céu. É um evento um tanto difícil de explicar e até mesmo de crer. Quando os relatos da ascensão de Cristo foram escritos, o céu era um lugar muito bem definido. Era um lugar lá no alto, onde está Deus e todos os seres celestiais, inatingível para nós humanos, que vivemos aqui embaixo, na terra. Também estava muito claro que o lugar oposto ao céu é o inferno, um lugar lá embaixo, para onde vão as piores criaturas, aquelas que se afastaram de Deus e não dão a mínima para a sua vontade. Durante milhares de anos esta cosmovisão em três estágios era muito clara. Ninguém questionava isso. A nós, que vivemos aqui na terra, somente era permitido o acesso a este estágio que conhecemos, o nível do chão, o lugar que nos mantém presos e não há como ir lá para cima ou lá para baixo antes da hora.

Mas hoje em dia as coisas mudaram muito. Sabemos muito sobre o céu e ele até foi novamente visitado por astronautas americanos nas últimas semanas. Sabemos que o universo é imenso, que se expande e é formado por milhões de corpos celestes, estrelas, milhões de outras galáxias como a nossa Via Láctea, buracos negros e coisas ainda muito misteriosas, que só podemos ver com atraso de milhões de anos-luz, como uma foto do passado cuja luz chega até nós com bastante atraso. Dizem até que há diversos universos paralelos. Com todo o nosso conhecimento e diversas teorias científicas sobre o espaço, o céu ficou cada vez mais distante, indefinido e cheio de mistérios. Principalmente, ficou um lugar menos divino. O céu do século 21 deixou de ser o lugar onde moram Deus e os anjos e virou o lugar preferido dos astrofísicos, dos astronautas e dos ônibus espaciais.

Onde é, afinal, o céu para onde Jesus foi? O que quer dizer a informação um tanto estranha de que Jesus subiu ao céu? Ele também embarcou no ônibus espacial Endeavour e está em órbita do nosso planeta? Ou o céu ao qual essa comemoração do dia de hoje se refere é um lugar que fica a milhões de anos-luz distante de nós, em algum lugar escondido no universo? Ou será apenas uma visão simbólica, para dizer que Jesus agora assumiu o seu posto de comando, depois de enfrentar coisas terríveis neste pequeno planeta e retornar ao reino que abandonou para nos salvar?

Como até hoje nem os astrofísicos, nem os astronautas conseguiram encontrar um lugar misterioso que poderia ser um céu, também os teólogos não apostam mais na idéia de que Jesus, quarenta dias depois de sua ressurreição, teria ido parar num lugar que poderia ser localizado no universo conhecido. Para muitos teólogos, na verdade, o céu nem é um “lugar” para onde se possa ir. Para os teólogos, o céu é ali onde está Deus. O céu está ali onde está Cristo, o Senhor que foi “subido” ao céu pelo Pai. E este lugar pode ser aqui na terra, na forma como lidamos entre nós, seres humanos, bem como dentro dos nossos corações.

A verdade é que nós, seres humanos, gostaríamos muito que Deus estivesse num lugar específico, que tivesse um “endereço fixo”, com caixa postal, telefone, e-mail... Quem sabe, até um lugar onde nós pudéssemos chegar e tocar a campainha da porta, olhar nos olhos de Deus e expor nossas aflições, dores, tormentos, reclamações. Muitos até gostariam de ter uma espécie de céu que fosse uma caixa de reclamações, onde se pudesse colocar os nossos desejos e, principalmente, onde reclamar quando não somos atendidos. Talvez, nós quiséssemos um céu com SAC, um Serviço de Atendimento ao Consumidor... Isso seria ideal, no pensamento de muitos. A gente ligaria para reclamar, como na fábrica de eletrodomésticos. Afinal de contas, tudo hoje em dia deve ser administrado que nem uma empresa: a igreja, a escola, a casa da gente; por que não o céu também? O céu devia ter um SAC, pelo menos com um telefone 0800!

Onde é o céu? O que significa essa conversa de que Jesus subiu ao céu? Como podemos interpretar isso? O que o nosso texto bíblico de hoje quer ensinar sobre Ascensão?

Em primeiro lugar, todos nós sabemos desde os tempos de criança, no Ensino Confirmatório, que Deus é onipresente, ou seja, que ele está em todos os lugares ao mesmo tempo. Isto significa que, antes de mais nada, ele não tem um endereço fixo, do tipo “Céu”, onde possa ser encontrado. Isto significa que, muito menos ainda, ele tem a igreja como endereço, embora muita gente ache que Deus more dentro da igreja...

A Ascensão, ao contrário, mostra que Deus, em Jesus Cristo, tomou todas as coisas em suas mãos. Fazendo Jesus Cristo “retornar” para junto dele, Deus deixa claro que agora tem o comando nas mãos. Todas as coisas estão sob o seu guarda-chuva: “Pôs todas as cousas debaixo dos pés e, para ser o cabeça sobre todas as cousas, o deu à Igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as cousas” (1.22-23).

As nossas dores, os nossos clamores, os nossos medos e angústias, todas as nossas perguntas sobre o passado, o presente e o futuro, tudo está sob o comando de Jesus Cristo a partir do dia da Ascensão. O objetivo da história da ascensão é deixar claro que, depois de tornar-se humano, vir a este mundo para salvá-lo e reconstruir o que estava quebrado, Jesus Cristo retoma o seu lugar, volta ao comando de tudo, inaugura um novo tempo, em que tudo está sob seu controle. Ou seja, em resumo: a comemoração de hoje não celebra coisa pequena! No dia de hoje, Jesus assume o controle.

Mas isso é assim, mesmo? Muita gente pergunta: Se Deus está no comando, como pode acontecer tanta desgraça no mundo? Se ele está no controle, por que ele não coloca ordem na bagunça? Como ele aceita que a natureza se revolte a tal ponto de provocar tragédias como terremotos, enchentes, deslizamentos, tsunamis e outras catástrofes que provocam milhares de mortes? Como explicar a fome, a violência, o terrorismo, as guerras, a exploração do homem pelo homem, a morte dominando em todos os lugares e acontecendo todos os dias, um mundo cada vez mais confuso e cheio de problemas? Como ele permite que gente desonesta, sem ética e sem escrúpulos sempre tenha sucesso e progrida, tornando-se importante e assumindo o controle de tudo para puxar a brasa para o seu assado, em detrimento da maioria?

Se Jesus Cristo está no controle, como explicar também tanta coisa que acontece na minha vida pessoal, como falta de dinheiro, pobreza, o flagelo das drogas, da bebida e de doenças incuráveis? Onde está Deus, que não intervém, que não se manifesta e não ajuda? Por que ele se mantém calado, indiferente, em silêncio diante de tanta injustiça, e diante dos problemas de cada pessoa? Por que ele não dá um jeito no câncer ou na AIDS? Como ele permite que umas pessoas sejam exploradas por outras? Como pode que na minha família há tantas desgraças? Como pode que sempre dá tudo errado para mim? De que adiantam as orações se Deus não escuta?

Se nós prestamos bem atenção no que Paulo escreve nesse texto, também precisamos chamar atenção para um detalhe de extrema importância. Ele diz que Deus deu a Jesus Cristo todo o poder, sobre todos os poderes deste mundo. Ele está acima de tudo e de todos, inclusive acima da morte, que ele derrotou na Páscoa. Se Jesus Cristo não venceu a morte, podemos fechar esta igreja e ir para casa, chorar amargamente, porque absolutamente nada vai nos salvar. Estaremos perdidos e seremos as criaturas mais miseráveis do universo. Mas o fato de Jesus ter assumido todos os poderes não quer dizer que ele agora virou um mágico, um mago que tem uma varinha de condão nas mãos para ir resolvendo os nossos pedidos. Jesus não é uma lâmpada mágica que a gente esfrega para fazer pedidos.

O que diz o nosso texto? “Pôs todas as cousas debaixo dos seus pés e... o deu à igreja, a qual é o seu corpo”. Ou seja, Jesus é o cabeça da igreja e a igreja é o corpo de Jesus. À primeira vista, isto não quer dizer muita coisa. Mas pensemos bem: O que a cabeça faz? Ela pensa, decide, comanda o corpo, coloca-o em movimento, para executar tarefas. Quem é mesmo o corpo da cabeça que é Jesus Cristo? A Igreja! Então, quem tem que se mexer é a igreja. Quem tem que executar o comando da cabeça, é o corpo.

E o que nós aprendemos com o apóstolo Paulo, também? Que a igre-ja é um corpo feito de muitos membros (1 Coríntios 12.12ss). Quem são estes membros? Quem? Nós! Ou seja, nós – que fazemos parte da igreja de Jesus Cristo – somos as suas mãos, os seus pés, os seus ouvidos, a sua boca, o seu nariz, os seus olhos, o seu coração... Então, a mensagem é muito clara: nós somos os responsáveis por fazer acontecer neste mundo; nós é que devemos colocar mãos à obra para mudar a injustiça, a guerra, a fome, a violência, a dor; nós somos instrumentos nas mãos de Jesus Cristo, por meio dos quais ele age neste mundo.

Então, isso significa que um mundo melhor só depende de nós? Sim e não. Na verdade, seríamos muito pretensiosos se achássemos que podemos instalar o Reino de Deus em nosso meio por nossas próprias forças, com as nossas mãos. Muitos já tentaram isso, inclusive a primeira comunidade cristã, que vivia uma espécie de comunismo primitivo, em que não havia propriedade privada, tudo era de todos, havia um caixa comum, um depósito de alimentos para todos e cada um só pegava o que precisava para viver. Se tivesse dado certo, a Igreja de Jesus Cristo hoje seria bem diferente, não é mesmo? Aliás, é um mau testemunho e uma vergonha para todos os cristãos o fato de que este propósito da primeira comunidade tenha fracassado. Mas, ao mesmo tempo, é uma espetacular lição de que um novo mundo é possível e que não devemos desistir só porque não deu certo.

O que deve ser lamentado é o fato de que a realidade hoje é bem outra. A igreja hoje gosta do poder, é chegada num dinheiro que só, ama as coisas boas e está dividida em partidos e grupos como toda a a nossa sociedade. Já Paulo alertava que não dá para ser igreja de verdade com uns di-zendo que são de Paulo e outros afirmando que são de Apolo; precisamos todos ser “de Cristo”. Mas esta não é a realidade, tanto que o padre jesuíta Alfred Loisy disse, certa vez, decepcionado com o papel mundano da Igreja: “Jesus anunciou o Reino de Deus, mas o que veio em seu lugar foi a Igreja”. Então, está provado que não vamos conseguir construir o reino de Deus pelas próprias forças. Ele será definitivo, derradeiro, somente quando o Senhor que hoje subiu ao céu voltar, para trazer consigo tudo aquilo que anima a nossa mais profunda esperança.

Mas isso não significa que devemos parar. Somos chamados a colocar sinais, bem concretos, do Reino de Deus que Jesus Cristo iniciou. Somos desafiados a colocar sinais de que um outro mundo é possível. O céu será em cada lugar em que um sinal destes florescer. O céu acontece onde ajudamos o próximo, amamos o inimigo, respeitamos as diferenças, levamos paz e justiça, construímos um mundo diferente, que é possível através dos dons que nos são concedidos pelo Espírito Santo. E cada um, cada uma de nós recebeu dons para isso. Não para mudar o mundo sozinho, mas para colocar sinais. Por meio das nossas ações concretas, o céu de Jesus Cristo se instala aqui no chão, em qualquer lugar.

Portanto, no dia de Ascensão Jesus não nos foi retirado, mas tornou-se um bem acessível a todas as pessoas, por nosso intermédio, nós que somos a Igreja. Amém.
(Proferida no dia 02.06.2011, na IECLB-Pomerode/Apóstolo Paulo)

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