sexta-feira, 3 de junho de 2011

Paz na Criação de Deus

Preliminares
Em cima das argumentações teológicas do tema, trazidas no bloco anterior pelo pastor Hugo Westphal, e com a meditação da terra como pano de fundo, vou tentar puxar alguns registros para a abordagem do tema em nosso sínodo, nas atividades sinodais e nas nossas comunidades. Antes, porém, algumas confissões, fundamentais para que o nosso conhecimento sobre os aspectos teológicos e teóricos do tema possam, de fato, transformar-se em compromisso e este tornar-se ação concreta.

1. Nossos desafios à ação não vencem a etapa do discurso. Pode parecer conversa mole, mas temos que fazer um mea culpa como igreja luterana: A igreja da Palavra tem uma enorme dificuldade para agir. Somos bons em constatar crises e problemas, entretanto, até mesmo nosso desafio à ação não passa de um bom e velho discurso. Fica na conversa, com raríssimas exceções. Eu também não tenho praticado muito os meus discursos. Somos todos frutos do meio luterano em que nos criamos e movimentamos.

2. Mesmo nosso bom discurso não tem sido profético. Preferimos o anúncio. Fugimos da denúncia. Temos medo do compromisso da denúncia, não gostamos do rótulo que ela coloca na nossa testa. Vale aqui, como antídoto, a frase lapidar de Martin Luther King: “O que me preocupa não é o barulho dos violentos, e sim, o silêncio dos justos”.

3. Não temos valorizado nosso potencial como IECLB. Gostamos de dizer que somos uma igreja minoritária no Brasil. Isso serve como justificativa para a nossa falta de ousadia profética. Calamo-nos, alegando falta de tamanho. Escondemo-nos atrás da nossa pequenez em relação à Igreja Católica e, mais recentemente, em relação aos pentecostais. Gostamos de nos desculpar, dizendo que não temos influência. Entretanto, nossas co-irmãs latino-americanas invejam o tamanho e o potenci-al da IECLB. A Igreja Luterana de El Salvador não é maior do que a paróquia de Timbó, mas não se cala e não se furta em ser profética diante da dura realidade salvadorenha. Todas as igrejas luteranas latino-americanas juntas, fora a IECLB, não são maiores do que o Sínodo Vale do Itajaí. Por isso, afirmo e desafio: A IECLB não tem o direito de ficar na moita, com o tamanho que tem. Nós somos a força luterana em solo latino-americano.

Paz e guerra
O que entendemos ao afirmar que nosso objetivo é “Paz na Criação de Deus”? O que isso tem a ver com a nossa vida? Há algum tipo de guerra em nosso meio, no Vale do Itajaí, nas nossas paróquias e comunidades? Quando pedimos por “Paz na Criação de Deus”, estamos afirmando, antes de tudo, que há conflitos nesta criação. Tais conflitos caracterizam-se por diversas estruturas de caos, fontes de sofrimento e lágrima, espaços em que reina a injustiça, o medo do futuro (desesperança) e morte. Como cristãos, cujo fundamento da fé e da esperança é o reino dos céus, que traz vida, esperança, salvação, não podemos cruzar os braços e esperar que esses conflitos (guerra) dentro da Criação sejam resolvidos somente na Nova Jerusalém. Pedir por paz na criação de Deus é clamar por soluções já. Nossa esperança escatológica clama por sinais que animem e fundamentem nossa esperança.

Que tipo de paz estamos pedindo? O seu sentido teológico já foi suficientemente trabalhado pelo Hugo. Mas não se pode confundir Paz com uma boa sensação interior, no sentido de que estamos bem, “em paz”. Nesse sentido, é preciso ouvir a advertência de Sua Beatitude, o arcebispo albanês Anastasios de Tirana: “O significado cristão de paz interior não está relacionado à apatia ou alienação em relação ao que acontece ao nosso redor”. Há muita inquietude no ambiente. Há muitas guerras acontecendo bem debaixo do nosso nariz. Elas são identificáveis nas crises que atingem a nossa sociedade.

Precisamos descobri-las para nos posicionar. Não porque vamos solucionar todos os problemas, mas porque a sociedade espera o posicionamento da igreja diante dos problemas e crises que enfrenta. Às vezes, não gosta de ouvir a resposta que temos a dar a partir do Evangelho, mas se espera que haja um pronunciamento.

As crises e propostas de ação
No mundo atual, delineiam-se as seguintes crises, que se originam num ambiente de conflito, de falta de paz:

1. A crise ambiental – O planeta não suporta mais. Toda a criação geme, sob o jugo da existência humana sobre o planeta. A humanidade é hoje o grande câncer da Terra, que corrói suas entranhas, enquanto consome cada vez mais energia, exaurindo as forças do nosso pequeno planeta. Para continuar mantendo o atual ritmo de consumo energético da humanidade, o nosso planeta já não dá conta. Segundo os especialistas, há dois anos o limite suportável desse consumo foi ultrapassado e precisamos de mais de um planeta para continuar no ritmo em que estamos. Quebrou-se o equilíbrio da sustentabilidade, isto é, da capacidade de reposição da natureza em relação ao que dela é exigido.

A luz vermelha está acesa, e o atual modelo civilizatório está caduco, exaurido, equivocado... mas a humanidade não quer ouvir. As conferências mundiais sobre o tema fracassaram todas, retumbantemente. A humanidade não consegue estabelecer metas mínimas para tornar menos traumática essa relação com a natureza. Ela está em crise e o futuro próximo aponta na direção de um grande colapso energético no planeta. Todas as iniciativas e protocolos firmados até agora são band-aid na ferida do planeta. Redução de emissão de gases de efeito estufa, tecnologias que desenvolvam novas formas de energia (etanol, eólica, carros elétricos), leis para conter o avanço da exploração predatória do que restou das nossas florestas... tudo só para tapar o que já passou do ponto. A ferida está descontrolada. O planeta sangra sob o jugo da dominação humana. Enquanto os ambientalistas tentam emplacar algum tipo de controle, a economia mundial, baseada sobre os combustíveis fósseis, continua crescendo a tachas de 10, 12 por cento ao ano. É uma luta absolutamente inglória e perdida.

Alguns ambientalistas acusam a igreja de fomentar o domínio do homem sobre o restante da natureza com um uso equivocado da história da criação, uma vez que se pode depreender dela que o homem é superior às demais criaturas. Tal interpretação, acusam, dá ao homem a arrogância da primazia sobre as demais espécies. Segundo eles, o ser humano não está acima dos outros seres vivos, em relação à natureza, sendo a interdependência entre todos total e equilibrada.

Desculpem se pinto um quadro tão negro, mas eu sou um dos que tenho participado dessa pintura desde os anos 70 e tenho escutado muitos impropérios e visto muitos narizes torcidos, mas nenhuma tentativa séria de alterar a rota.

Para nós, aqui no Vale do Itajaí, temos as nossas próprias conseqüências a enfrentar, frutos da nossa indiferença e do nosso abuso para com a dadivosa natureza. Resumindo, a nossa valorosa sociedade de imigrantes acabou com a cobertura vegetal em menos de dois séculos. Quando eu era criança, eu morava bem do lado de uma fábrica de esquadrias. Diariamente eu via os caminhões lotados de toras chegarem à serraria. Eram dezenas todos os dias. Só a serragem do corte das tábuas formava montanhas à beira do rio Itajaí do Sul. No ano de 1968, esta fábrica pegou fogo. Não sobrou nada de pé. As montanhas de serragem na barranca do rio cozinhavam como vulcões ativos mais de meio ano depois daquele incêndio.

O que mais me chamava a atenção, avaliando a partir de hoje, era o desperdício da madeira. As primeiras tábuas de fato industrializadas somente eram recolhidas depois de cortar fora todo o brancal da tora. Só o cerne servia. E olha que no final dos anos 60 as toras vinham de cada vez mais longe. Nenhum perau escapava. Tudo foi dizimado. As últimas serrarias foram fechadas nos anos 80. Hoje, o ataque se repete, implacável, sem controle, sobre a Amazônia, a última fronteira virgem de flo-restas no Brasil.

O resultado para o vale? Bem, basta lembrar que no mês de fevereiro de 2011 o Samae interrompeu o fornecimento de água da cidade porque simplesmente não conseguia vencer a quantidade de barro que o rio trazia consigo. De onde vocês acham que vem este barro todo? No início dos anos 90 o Lauro Bacca me falou: “Se você sobrevoar a foz do rio Itajaí-Açu, vai ver uma língua de terra fértil para dentro do mar de mais de 20 quilômetros; tudo coisa que o rio trouxe das nossas lavouras”. O quanto os morros que descem podem causar grandes catástrofes e muitas mortes, também já sabemos e até podemos ensinar a outras regiões como enfrentar tudo isso.

Para nós e para o trato do tema nas nossas comunidades, como vamos lidar com isso? O que vamos fazer? Precisamos parar de assistir a tudo isso de braços cruzados e passar ser propositivos, com boas idéias que mudem o cenário. Como a comunidade luterana do Vale pode construir paz na criação de Deus aqui, diante deste quadro ambiental falido e para cuja destruição contribuiu fortemente no passado?

A crise ambiental, na nossa região, tem também a ver com a crise do aquecimento global. Basta olhar as taxas de crescimento do número de veículos nas nossas ruas. Ficamos chateados com os projetos atuais, que pretendem privilegiar o transporte coletivo (corredores exclusivos de ônibus), brigamos pelo direito de continuar andando com os nossos belos carrões e por espaço para andarmos com eles sem pisar muito no freio. Como trabalhar esta flagrante incoerência a partir das comunida-des? Que futuro estamos ajudando a construir, usufruindo de um mundo tão dependente do petróleo, como se nada pudesse nos acontecer num futuro muito próximo?

Como podemos apregoar “Paz na Criação de Deus”, se não somos capazes sequer de dar uma parada para avaliar o nosso próprio comportamento consumista e tentar, pelo menos tentar, elaborar alguns passos que mudem um pouquinho a cor do horizonte à nossa frente, que, repito, está lotado de nuvens bem negras? Ou seja, há muito que fazer, já, agora, neste instante. Se nada fizermos, o nosso discurso “ambientalóide” não passa de conversa mole, mentira, engodo. Continuar falando do batido papinho da reciclagem não é, realmente, um avanço neste momento. Infelizmente, é o que vejo como abordagem principal no material que a IECLB nos oferece sobre este tema.

Proposta concreta: Particularmente aqui no vale, atingidos pela catástrofe de 2008, é possível elaborar uma ação concreta a partir do sínodo? Um dos clamores do pastor sinodal Guilherme Lieven no Rio de Janeiro levanta uma questão muito pertinente também para nós no Vale: “Não estamos preparados para enfrentar tragédias de modo eficiente”, foi a constatação dele. Podemos caminhar propositivamente no sentido de planejar melhor para enfrentar tragédias climáticas? Porque, estejamos certos, elas virão novamente e, provavelmente, com intensidade ainda maior. Precisamos planejar as ações, determinar prioridades, estabelecer regras de ação, montar uma estratégia consciente. Podemos montar um grupo de trabalho que se ocupe com isso no sínodo? Vale aqui a regra de ouro dos ambientalistas, também para a nossa ação como IECLB: “Pense globalmente e aja localmente”.

2. A crise social – Não podemos falar de “paz na criação de Deus” enquanto não resolvermos o grave desequilíbrio social que insiste em nos separar entre ricos e pobres. A justiça é o pressuposto da paz. E não há justiça enquanto aumenta o fosso entre ricos e pobres. Porque o problema principal é que, enquanto 20% da humanidade acaba com o planeta, consumindo 80% de tudo o que se produz e de todos os recursos do planeta, a maioria pobre sempre sofre as consequências mais dramáticas da agressão ambiental.

O prefeito de Manaus, Amazonino Mendes, tascou um “Então morra!” a uma moradora de área de risco que disse a ele que as pessoas que vivem ali não escolheram isso, mas não têm condições de construir moradia digna.

Além da pobreza, a crise social é a grande fomentadora da violência. Não adianta falar em segurança pública, leis mais rigorosas, redução da idade penal, mais policiamento nas ruas etc., enquanto não nos posicionarmos claramente por substancial melhoria na distribuição dos bens produzidos pela nossa sociedade. É o bem-estar social que produz a paz. Quanto maior a parcela da população com acesso aos bens produzidos pela sociedade, mais claramente é possível identificar a violência realmente com atos violentos oriundos de distúrbios psicológicos, desvios de com-portamento etc. E também mais fácil será lidar com esses casos.

Por falar em violência, pedir por Paz na Criação é também enfrentar a violência doméstica, a violência contra as mulheres, a violência contra as crianças, a violência contra as pessoas com deficiência. Há muitas lacunas aqui. Um rápido levantamento do sínodo, nos grupos de OASE, poderá constatar o quanto esse tipo de violência anda à solta também em nossas comunidades. O que fazer? Há idéias concretas? Podemos elaborar um projeto sobre isso?

3. A Crise Religiosa – Hans Küng sintetiza a necessidade de paz religiosa como base da paz entre os povos e nações nestas contundentes palavras: “Não haverá paz entre as nações se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões se não existir diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais. Nosso planeta não irá sobreviver se não houver um etos global, uma ética para o mundo inteiro”.

Colegas, particularmente neste aspecto, a humanidade está entrando num beco sem saída, levantando sistematicamente o cenário para a próxima guerra mundial. O crescente endurecimento das relações entre o ocidente e o oriente tem uma das principais origens no confronto religioso. Resumidamente, basta só lembrar o uns e-mails que andam circulando por aí, um deles da igreja Batista, mostrando com números alarmantes um futuro negro da humanidade sob domínio do islamismo. Isso é incitamento religioso da pior espécie.

Mas também nós, em pleno inverno ecumênico, precisamos melhorar muito o nosso inter-relacionamento entre as igrejas que nos cercam. Vivemos numa guerra disfarçada. Celebramos “festas” ecumênicas, mas no dia-a-dia da vida comunitária nos combatemos e condenamos mutuamente. Coisas como “esse batismo não vale”, “tem que ser tantos padrinhos dessa confissão”, “com aquela igreja não me sento”, etc. são apenas algumas demonstrações. Em vez de ser propositivos e positivos, preferimos condenar, comparar, nos enaltecer diante do outro. O que podemos fazer para melhorar? Podemos construir uma proposta, a partir do tema do ano, dentro do movimento ecumênico, para melhorar as relações com outras confissões? Está bom assim como o movimento ecumênico vem caminhando no Sínodo ou podemos melhorar isso e como podemos melhorar? Será que 12 anos de convívio tríplice (católicos, IECLB e IELB) é suficiente ou precisamos avançar? Vamos envolver os outros também, que são muitos no Vale?

Mais do que isso, precisamos de um plano permanente de combate à intolerância em nossas comunidades. Como podemos organizar isso? Já há iniciativas concretas? Quais? Podem ser repetidas e incrementadas?

Regra de ouro: Eu só posso esperar aceitação quando sou capaz de aceitar os outros como são.

MARCANDO O TEMA
Todas as ações e estudos do tema do ano nas comunidades, entretanto, não deveriam nos dar por satisfeitos. Precisamos marcar a presença luterana no Vale. Somos um grupo forte, representativo. Talvez, se quisermos, até podemos nos tornar ainda mais fortes, unindo-nos aos irmãos de outras confissões. Para que? Um ação que marque a nossa presença, como cristãos, no Vale do Itajaí.
Proponho, por isso, formar uma comissão (a partir do sínodo, do núcleo ecumênico, enfim...) para elaborar um evento para o dia 22 de maio, data marcada mundialmente para celebrar, em todo o mundo cristão, a Convocatória Ecumênica Internacional pela Paz.

A convocatória em si acontecerá de 17 a 25 de maio, em Kingston, Jamaica, para manifestar e fortalecer nossos esforços conjuntos na busca do objetivo de superar a violência, proposto pelo CMI. A celebração da convocatória foi aprovada pela 9ª Assembléia em Porto Alegre (2006). Na Jamaica estará reunida uma ampla diversidade de pessoas que dão testemunho da paz de Deus como dom e responsabilidade de toda a família humana, para fortalecer a posição da igreja en relação à paz, ofere-cer oportunidades para estabelecer relações, e aprofundar nosso compromiso comum em favor dos processos de reconciliação e de paz justa.

O fundamento teológico da CEIP é o apelo ecumênico à paz justa e a elaboração de uma teologia ecumênica da paz. O apelo à paz justa se entende como “um processo coletivo e dinâmico, mas arraigado de libertação dos medos e carências dos seres humanos, de superação da animosidade, da discriminação e da opressão, e de estabelecimento de condições para relações justas que privilegiem a experiência dos mais vulneráveis e respeitem a integridade da criação”, diz texto de estudo preparatório ao evento.

Os objetivos da convocatória são:
• celebrar a paz de Deus e a boa vontade do povo de Deus;
• trabalhar na elaboração de nossa teologia da paz e para abandonar toda justificação teológica da violência;
• compartilhar nossos relatos sobre fracassos e êxitos e ouvir exemplos de boas práticas;
• equipar-nos com instrumentos criativos e eficazes para evitar e superar a violência e promover a paz e a justiça;
• comprometer-nos em favor de uma teologia e prática da não-violência, a paz e a justiça;
• proclamar uma Declaração Ecumênica sobre a Paz Justa.

O Domingo Mundial pela Paz, 22 de maio de 2011, será um acontecimento mundial, as igrejas de todos os cantos do mundo são convidadas a celebrar o dom da paz que Deus nos dá. Os que participam estarão unidos em espírito, nas canções e na oração com a Convocatoria Ecumênica Internacional pela Paz na Jamaica, unidos na esperança da paz. Quando as comunidades de cada fuso horário se reunirem para o culto e a oração no domingo, 22 de maio, uma onda de louvor e oração pela paz rodeará o mundo. O objetivo é marcar a nossa participação com um evento público, nesse dia.

(Palestra proferida na Conferência Ministerial do dia 1º de março de 2011 no Sínodo Vale do Itajaí)

Nenhum comentário:

Postar um comentário